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Angela Davis e o equívoco abolicionista

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No último fim de semana de setembro passado, a Folha de S. Paulo publica entrevista com Angela Davis, ícone da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos da América do Norte, agora com 72 anos, aqui, no Brasil, para relançar seu livro, Mulheres, Raça e Classe.

Conhecida ativista política nos anos sessenta, comunista creditada, professora de filosofia, em apertadíssima manifestação, expõe seu pensamento sobre alguns assuntos que ainda se encontram na lista de matérias indigestas para a sociedade brasileira. É evidente o interesse da sociedade em que atua a Magistratura, que, a seu turno, sobre o assunto, não pode deixar de conhecer-lhe os contornos, porque causa remota, mas não tanto, de tantos conflitos levados ao Judiciário, cujos integrantes nem sempre têm condições de identificar os reflexos lançados pelos problemas de cunho étnico-social, nascidos com o movimento de cidadãos que, em termos históricos, ainda conseguem, se olhar o passado recente, divisar a chaga da escravidão, por exemplo. O abandono de uma classe (casta?) à própria sorte, cientes todos de que, sem a lavoura ou o trabalho, o escravo, liberto, com a fraude da Lei Áurea, não teria condição de sobrevivência, é fato notório que deu origem a favelados e marginalizados, discriminados e vítimas da covarde desigualdade, não raro estimulados ao crime por vingança atávica.

A visita da Senhora Davis, quanto mais não seja, dá azo à revisão de institutos e instituições da formação sociológica nacional, ainda, sob muitos aspectos, em vagaroso andamento. O conhecimento de quem seja a autora e filósofa, e de seu papel na luta pelos direitos humanos, tende a zero, em termos da juventude cuja idade medeie entre vinte e trinta anos.

O título da matéria,”Brasil e EUA fracassaram em abolir escravidão”, por si só, dada a ambiguidade (aboliram ou não aboliram, dúvida que supera textos legislativos esmaecidos no universo da realidade), já acende o fogo das incertezas. Ou se conjectura em torno de alguma tradução imperfeita, ou a tese não condiz com a notoriedade científica de sua autora. O fracasso que, sem qualquer hesitação, está em que, após séculos de genocídio contra africanos de diversos povos, torná-los “livres”, através de uma lei, no caso brasileiro, de dois artigos e muitos equívocos, e, no deste e no dos EUA, ato de emancipação outorgado por Lincoln, nenhuma referência a auxílio ou indenização ao ex-escravo, abandonado à própria sorte, embora, na hipótese americana, haja menção a trabalho remunerado e possibilidade de recrutamento para o Exército.

Estes pontos históricos, ausentes da minúscula reportagem, para a sociologia brasileira, têm pouca ou nenhuma visibilidade.

A professora, cuja estada no Brasil passou em brancas nuvens, em termos de importância histórico-científica, na entrevista, se detém nos aspectos sobre racismo e sua conexão com o capitalismo e patriarcado; a violência institucionalizada, no estupro e na ação policial; o feminismo e as lutas radicais; o aborto; a violência de gênero; o anticapitalismo; as mudanças globalizadas; a desigualdade, visível nas prisões.

Vejamos, pois, o que o magistrado não deve ignorar, consciente ou inconscientemente. 

Em primeiríssima plana, as vicissitudes e dificuldades para identificar, na particularidade dos casos, estas correlações históricas, passam pela interpretação dos textos constitutivos do ordenamento jurídico nacional. Vejam que a Constituição Federal é abundante em referências sobre os diversos itens.  No tocante ao racismo, desde a configuração erradicativa das desigualdades sociais, dentre os objetivos fundamentais da República(art.3º, III, e IV), a Lei Maior especifica a regência de sua política de ação, nas relações internacionais, também com o expresso repúdio a esta chaga invencível (art. 4º, VIII), agressora do princípio básico dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos da igualdade de todos perante a lei (art. 5º), descrita como crime, por comando do art. 5º, XLII, em diplomas como Lei nº 7.716/89, 12.288/2010.

Embora a Constituição Federal não disponha sobre capitalismo, como doutrina, aqui e ali, ressalta arcabouços da filosofia, como a livre iniciativa, a propriedade privada, a livre concorrência, o pleno emprego. No entanto, ressalta a função social da propriedade, uma vez mais, e a redução das desigualdades, apanágio do socialismo, sob muitos aspectos. Os itens estão todos no art. 170, que inaugura o Capítulo da Atividade Econômica.

Assim, não se pode crer que o universo sociopolítico nacional seja adepto exclusivista de uma ou outra doutrina, em termos meramente teóricos, a despeito de, na linha da sociologia prática, pender para as consequências capitalistas. Neste particular, quando a respeitável ativista exorta a, através da identificação do capitalismo com racismo, pregando seu desmantelamento, também se haverá de reconhecer na proposta uma certa configuração datada, própria dos momentos da guerra fria, em que, se, de um lado, o proselitismo e o “patrulhismo” macarthista engendravam o vigoroso comportamento capitalista dos anos cinquenta (nem Charles Chaplin escapou), de outro, o stalinismo, que ainda hoje mostra suas garras e dentes, usou dos mesmos métodos, e até piores, com a eliminação, por exemplo, de opositores do regime, de Trotski (no México, 1940), passado por Litvinenko (Londres, 2006), até Boris Nemtsov (Moscou, 2015). Os julgadores não podem se deixar levar por estilos propagandísticos que professam uma outra doutrina, equivalentes, sob tantos aspectos, para quando tiverem de exercer seu mister. Como se colhe do muito citado (e pouco lido, na sua real concepção) “Elogio dei Giudici – scritto da un avvocato” (Eles, os Juízes...):  Não basta que os magistrados conheçam à perfeição as leis como são escritas; seria necessário que da mesma forma conhecessem a sociedade em que essas leis devam viver.

São muitas as facetas que aconselham os juízes, quando os conflitos envolverem cores sociológicas perceptíveis, a resgatarem as circunstâncias em que valores e princípios dessa natureza se apresentem. Não é operação das mais fáceis, até porque, entre outros meandros da interpretação jurídica, ainda hoje, para analogia comparativa, a frase inaugural da obra de Rudolf Von Ihering, A luta Pelo Direito,” o fim do direito é a paz, o meio de atingi-lo a luta“, desperta perplexidade e desentendimento, já que, para o que se afasta da história, as fórmulas de desforço físico, como as da defesa da posse (art. 1210, §1º, do Código Civil) e as de legítima defesa (art. 23, II, do Código Penal) seriam as únicas consideráveis, para efeito de acolhimento de teses liberatórias do dever de indenizar e descriminatórias do injusto. Gandhi e Luther King lutaram sem violência. Já quanto à visitante Angela Davis e ao ativista Malcolm X, seu contemporâneo e inspirador, melhor dirão suas biografias. Em qualquer das situações, no entanto, a luta de todos foi e é contra o despotismo, seja de esquerda ou de direita. É como se encontra na obra de Von Ihering; “O despotismo sempre teve início com violações das regras de direito privado, com atos de desrespeito ao indivíduo... aqui devem concentrar-se as resistências...”  O jurista comenta que nem mesmo Maquiavel “...forneceria uma receita mais eficaz para eliminar a autoconfiança e a força moral...””…Destruir o sentimento de liberdade e confiança do camponês por meio de requisições e trabalhos forçados, colocar o cidadão sob a tutela da polícia, condicionar ... permissão de viagem...distribuir os impostos segundo o capricho e as boas graças do governante...” 

Leitor eventual. Aqui não há novidades. Aliás, trabalhos forçados, tutela policial, viagens condicionadas não lembrariam a qualquer cultor da ciência da história do genocídio da escravidão?

Não é difícil, pois, conceber as razões da Senhora Davis. Mas, no que se refira a capitalismo, os motivos e as razões que possam estar no motor de arranque de seus movimentos parecem-me deslocados, nas coordenadas do tempo e espaço. 

Não há mais lugar para as dicotomias maniqueístas. A qual capitalismo a valorosa ativista se refere: ao chinês, do comunismo escravocrata, para exemplo visível na indústria de que todos somos consumidores? Ou o socialismo/capitalismo do Senhor Roman Abramovich, bilionário russo, proprietário do Chelsea FC?

Para os que insistem na ambivalência, na identificação comunismo está para a esquerda, assim como a direita para o capitalismo, além de confundir sistema de governo com teoria econômica, imprecisão científica em que incidem muitos luminares, de reputação inabalável. Norberto Bobbio, no seu famosíssimo “Direita e Esquerda”, assevera que a natureza da distinção entre esquerda e direita pode ter alguma aplicabilidade no cenário da luta política. Mas constata-se “... que, mesmo sendo válida a distinção em termos abstratos, de fato, a ação política daquela que a um tempo era a esquerda não é muito diversa daquela que vinha habitualmente sendo atribuída à direita... O que está acontecendo é que a esquerda não consegue mais fazer valer as próprias razões numa situação em que a tradicional política de esquerda está destinada a perder consenso”. 

Desta forma, enquanto a admirável Angela passeia pelo Brasil – quase incógnita, sem qualquer notícia mais visível – a destilar antigas reivindicações, utilizando-se de argumentos tão imprecisos, ao longo da história, os candidatos a eleições , aqui e em qualquer lugar do mundo, de Crivella a Freixo, o que estabelece um liame com a realidade social para qual o juiz brasileiro  tem que estar atento, todo e qualquer, não só o eleitoral; de Trump a Hillary, na disputa do comando do país mais poderoso do último século, e de cujo desempenho depende nossa vida econômica, vamos cumprindo nosso dever de trazer a debate esses dados de caráter sociológico cujas consequências haverão de configurar, em muitas ocasiões, o fio da balança da justiça.

Portanto, diante da possibilidade (na realidade fato incontroverso) da redução a condição análoga à de escravo (art. 149, do Código Penal), com que o legislador reconheceu os riscos que correm os cidadãos (ou não) menos favorecidos de condições socioeconômicas de retornar às suas históricas origens sociais, reeditado os séculos XVIII/XIX, pondo à mostra a continuação desta chaga, ainda hoje, nada mais aconselhável que, diante de situações como a da ausência de boa-fé nos contratos , em geral, da anulabilidade dos atos praticados com vício de vontade, além da possibilidade da resolução do contrato, na hipótese de onerosidade excessiva prevista pelo art. 478, do Código Civil , o julgador esteja municiado desses conhecimentos para, convertidos em sabedoria, entregar a justiça com que se corporifica a prestação jurisdicional.

* Desembargador