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Prefeitos sem boas contas: elegibilidade e outros efeitos

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Decidindo sobre a elegibilidade de Prefeitos que tiveram suas contas negativamente avaliadas pelo Tribunal de Contas, o Supremo Tribunal Federal, por 6 votos contra 5, concluiu que mesmo tendo as contas consideradas irregulares pelo Tribunal de Contas respectivo o prefeito pode candidatar-se a nova eleição, mantendo, portanto, sua elegibilidade. Essa decisão, proferida no dia 10 de agosto corrente, no julgamento conjunto dos Recursos Extraordinários 848.826 e 729744, teve enorme repercussão, dando motivo a reações indignadas, sobretudo de entidades ligadas aos Tribunais de Contas, que consideraram contrária à legislação vigente a decisão da Suprema Corte e, mais do que isso, uma redução da autoridade e do prestígio dos Tribunais de Contas.

Examinando-se com objetividade e serenidade os fundamentos da decisão do Supremo Tribunal, verifica-se que, na realidade, o que levou àquela decisão da Corte Suprema  foi o fato de que a maioria dos julgadores tomou por base uma disposição constitucional clara e expressa, que estabelece uma barreira à plena  aplicação de normas legais dispondo sobre a inelegibilidade no caso de Prefeitos Municipais. Com efeito, a Lei das Inelegibilidades, Lei Complementar nº 64, de 1990, dispõe que são inelegíveis “os que tiverem as contas rejeitadas por irregularidade insanável e que configure ato doloso de improbidade administrativa, por decisão irrecorrível do órgão competente”. Esse dispositivo resultou de alteração introduzida pela Lei Complementar 135 de 2010, a Lei da Ficha Limpa. Esta foi proposta por iniciativa popular, tendo recebido a assinatura de mais de um milhão e trezentos mil eleitores e foi inspirada justamente no propósito de aperfeiçoar o sistema eleitoral. 

No decurso dos debates judiciais sobre a aplicação dessa legislação houve várias divergências, sendo necessário um exame cuidadoso dos argumentos em que se fundamentaram os Ministros do Supremo Tribunal Federal para, em sua maioria, concluir que, apesar de ter suas contas negativamente avaliadas pelo Tribunal de Contas, os Prefeitos continuam elegíveis. O ponto fundamental é a existência de uma norma constitucional expressa e absolutamente clara dando tratamento especial ao controle das contas dos Prefeitos Municipais. Esse dispositivo é o artigo 31 da Constituição, segundo o qual a fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno dos Municípios.  No parágrafo primeiro acrescenta-se que o controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver. Esta expressão final justifica-se pelo fato de que apenas os Municípios do Rio de Janeiro e de São Paulo têm o seu próprio Tribunal de Contas. Nos demais Estados essa atribuição é dada ao Tribunal de Contas estadual.

Mas aqui vem um ponto juridicamente fundamental. O parágrafo segundo desse artigo 31 dispõe o seguinte: “O parecer prévio, emitido pelo órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal”. Como fica bem claro por esse dispositivo constitucional, o parecer do Tribunal de Contas sobre a regularidade ou irregularidade das contas prestadas pelo Prefeito não prevalecerá, ou seja, não será considerado juridicamente eficaz, se dois terços dos membros da Câmara Municipal decidir que ele não prevaleça. Assim, pois, por disposição constitucional a conclusão do Tribunal de Contas, favorável ou contrária à regularidade das contas apresentadas pelo Prefeito, não será acolhida se dois terços dos Vereadores assim o decidir.

Esse é o centro das controvérsias. Os eminentes Ministros Luís Roberto Barroso e Rosa Weber, tomando por base uma distinção estabelecida pelo Tribunal Superior Eleitoral, que distingue entre contas de governo e de administração, votaram pela inelegibilidade do Prefeito se a conclusão do Tribunal de Contas relativa à gestão das finanças municipais afirmar sua irregularidade, dizendo que as “contas de gestão” devem ser julgadas pelo Tribunal de Contas, sem participação do Legislativo. Diferentemente dessas, as “contas anuais de governo” é que devem apreciadas pelo Legislativo, segundo eles. Contrariamente a essas conclusões, assinalou a preclara Ministra Carmen Lúcia que a Constituição não estabelece distinção entre contas de governo e de gestão e, além disso, é muito clara quando dispõe, no artigo 31 e em seu parágrafo 1º, que a fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo, “com o auxílio dos Tribunais de Contas”.  Assim, pois, o Tribunal tem a função de auxiliar e não de julgar, como pondera a preclaraMinistra.

Em vista dessa controvérsia, vem muito a propósito reproduzir aqui as observações do eminente constitucionalista José Afonso da Silva, em seu clássico “Comentário Contextual à Constituição”: “O parecer prévio que o Prefeito tem que prestar anualmente à Câmara Municipal, emitido pelo órgão de contas competente,não tem apenas o valor de uma opinião que pode ser aceita ou não. Não é, pois, um parecer no sentido técnico de opinião abalizada, mas não-impositiva. Ao contrário, ele vale e tem a eficácia de uma decisão impositiva. Sua eficácia pode, porém, ser desfeita  se dois terços dos membros da Câmara Municipal votarem contra ele. Só assim ele não prevalecerá.”

O que se verifica é que a Constituição deu tratamento diferenciado ao controle das contas municipais, dando papel relevante ao Tribunal de Contas mas, ao mesmo tempo, outorgando às Câmaras Municipais o poder de sustar os efeitos de sua conclusão, em caso de parecer negativo. Em relação às manifestações de grande insatisfação quanto a esta possibilidade, o que se pode dizer é que se trata de preceito constitucional, superior, portanto, às disposições da legislação complementar ou ordinária. É um tema que merece reflexão e eventual proposta de emenda constitucional, em defesa do interesse público. Mas a par disso é importante e oportuno assinalar que a possibilidade de sustação dos efeitos sobre a elegibilidade do Prefeito não diminui a importância dos Tribunais de Contas e nem elimina totalmente sua influência. Na realidade, além da questão da elegibilidade do Prefeito existem outros aspectos jurídicos de grande relevância. Com efeito, se o parecer do Tribunal de Contas, além de concluir propondo a rejeição das contas por haver irregularidades, apontar fatos e práticas que configurem crime contra a Administração Pública ou o patrimônio público o Ministério Público poderá tomar por base esses elementos e promover a responsabilidade penal do Prefeito ou de outro eventual responsável pela ilegalidade. Assim, pois, tem sempre grande relevância o controle pelo Tribunal de Contas.

* jurista