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'Al outro lado del río'

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“Nossa revolução passa sempre pela ternura, pela alegria que sempre se torna proximidade e compaixão e leva a se envolver e a servir à vida dos outros”, disse o Papa Francisco na sua última missa em Cuba.

Vi pela primeira vez. Chorei. Dez vezes revi, dez vezes chorei.

Falo do filme 'Diários de Motocicleta', de Walter Salles, sobre a viagem de Ernesto Che Guevara e Alberto Granado da Argentina à Venezuela nos anos 1950. Três passagens são as mais marcantes, entre muitas outras. A primeira, quando no aniversário do Che, celebrado à beira do rio Amazonas, no Peru, ele faz um brinde ao povo peruano que o acolheu e à América unida. A segunda, quando no final da viagem, Che diz ao amigo Granado: “Aconteceu algo que eu tenho que pensar muito tempo. Quanta injustiça, não?” A terceira,quando, de noite, durante sua festa de aniversário, Che se atira na água e resolve atravessar a nado o rio Amazonas,encontrar os amigos hansenianos no outro lado do rio, sozinhos, enquanto a festa rolava do lado de cá. Não podiam/estavam proibidos de atravessar, eram hansenianos: “Vou festejar meu aniversário do outro lado do rio com eles.”  

O uruguaio Jorge Drexler compôs uma música para o filme, premiada com o Oscar de melhor música original, a primeira em língua espanhola. Canta o poeta latino-americano: “Clavo mi remo en el agua/ Llevo tu remo en el mío/ Creo que he visto una luz al outro lado del río”.

Há uma luz do outro lado do rio. A luz são os hansenianos que os médicos não podiam tocar sem usar luvas, embora não houvesse qualquer perigo de contágio, os leprosos ‘doentes’ separados dos ‘sãos’ por um rio, sozinhos à noite, fora do mundo. Che e Granado quebram isso. Não usam luvas, jogam futebol com eles, cantam, festejam, celebram. São companheiros.

Jorge Drexler canta: “Sobre todo creo que no todo está perdido/ Tanta lágrima, tanta lágrima. E yo soy um vaso vacío/ Oigo una voz que me llama, casi un suspiro/ Rema, rema, rema rema, rema, rema/ Clavo mi remo en el agua/ Llevo tu remo en el mío/ Creo que he visto una luz al outro lado del río”. 

Remar até o outro lado do rio, para onde está o ‘perigo’, onde estão os desprezados do mundo, os humilhados, os oprimidos e explorados, os trabalhadores. Remar até o outro lado do rio da vida, lá para onde está a solidariedade, a justiça a ser feita, o novo a ser construído. Levar teu remo no meu, tua voz na minha voz, teus sonhos nos meus sonhos.

Os dois Franciscos – o santo, cuja data é celebrada em 4 de outubro, e o Papa, que escolheu este nome por causa do santo – atravessaram o rio.

A vida exige travessias. Travessias para encontrar e saborear as diferenças, reconhecer e mirar os diferentes, seu pensamento e valores, sua história e cultura. É preciso atravessar o rio a vida inteira.Estamos em tempos em que, especialmente, é preciso atravessar o rio.

“Nossa revolução passa pela ternura”, disse o papa Francisco. “Hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás”, disse Che. Porque do outro lado há uma luz. A água suja, a escuridão, o não saber o que há no meio do rio. Numa das travessias de barco Che pergunta ao barqueiro se o rio é fundo. Este responde que é. Che tem asma. Mesmo assim ele se joga na água, para encontrar o outro, a outra, os outros, as outras.

O testemunho, o compromisso, aliados à coragem, superam o medo e o desconhecido. E ressuscitam a esperança revolucionária.

* Assessor Especial da Secretaria Geral da Presidência da República