ASSINE
search button

Vida e morte, morte e vida

Compartilhar

De vez em quando, vida e morte aprontam. Especialmente a morte, quase sempre ela, e de forma brutal e inesperada.Entrelaçam-se por tortos caminhos, ou brigam entre si inconciliavelmente. Palavras não bastam ou palavras não há para descrever a dor ea felicidade misturadas. Ainda mais quando os acontecimentos são numa pequena comunidade, onde todas e todos criam-se e rezam juntos, se conhecem, convivem todos os dias, a vida inteira.

Chego em casa de mamãe Lúcia, Santa Emília, Venâncio Aires, interior do interior do Rio Grande do Sul, sábado de noite, 21 de agosto de 2015. “MorgengibtseingrossFest -Vai ter festa amanhã”, diz-me ela em alemão. Eu:“WasFest? Ichweissdochnichts–Qual festa? Não tô sabendo de nada?” Ela: “Der BêkaNaldound die Dulce feiren 70 JahreVerheireit - O BêkaNaldo e a Dulce festejam 70 anos de casados”. Eu: “Und bin icheingeleit? - E estou convidado?”Ela:“Sicher. Der hat extra gesagt. Der Selvinoauch - Claro. Ele falou especialmente.O Selvino também.”

Fico todo feliz. Reinoldo Becker (o BêkaNaldo, como falam os descendentes de alemães. Sobrenome dito antes do nome) e dona Dulce festejam as Bodas de Vinho. Acontecimento inusitado e histórico na comunidade. Nunca um casal chegou aos 70 anos de casamento em Santa Emília, disse o presidente da Comunidade São Luiz, Roque Becker, na missa  de reafirmação dos votos dos ‘jovens’ nubentes.

Festa lá é festa daquelas! Dezenas de convidados, churrasco, conjunto musical especialmente contratado, a ‘polonaise’, dança típica que nunca deixa de acontecer. Ainda mais quando os noivos parecem estar casando pela primeira vez. Dez filhos criados, mantêm a saúde e o viço, ele 92 anos, ela 91. Dia anterior ao casamento, o noivo circulava dirigindo seu microtrator pela estrada,carregando a carne do churrasco para o Ginásio Luizão. A ‘polonaise’ foi ‘puxada’ pelo casal, quase meia hora de dança, no maior entusiasmo. E já convidando todas e todos paraas Bodas de Diamante. ‘Quem estiver vivo, esteja presente.’

Domingo de manhã, levanto cedo, preparando-me para o dia. Mal chego na sala, o mano Marino chega com a notícia: “Faleceu a filha do Fábio e da Vera Kroth. Afogou-se na piscina.” Valentina Eduarda tinha três anos, flor de criança. O casal é da comunidade, conheceram-se ambos jogando futebol no time da casa, o São Luiz, ele um dos donos do Frigorífico Kroth, empresa grande para os padrões locais e histórica da comunidade (começou como pequeno açougue), uma centena de empregados em pleno interior do interior. 

Primeiro e óbvio pensamento: acabou o dia, acabou a festa, acabou a alegria, acabou tudo.

Santa Emília é uma comunidade do interior de Venâncio Aires, município conhecido como a Capital Nacional do Chimarrão, um dos municípios gaúchos e brasileiros de maior número de agricultores familiares, maior produtor de fumo (tabaco) do Brasil. Dista dez quilômetros da cidade de Venâncio,que, por sua vez,dista cem quilômetros de Porto Alegre.

Santa Emília completa 150 anos em 2015. Grande festa comemorativa está sendo preparada para os dias 5 e 6 de dezembro. Por lá,muitos ainda falam alemão no típico dialeto local, como eu com mamãe, alemão bem diferente do alemão atual da Alemanha, herança do século XIX. Todos se conhecem e se encontram na igreja, na Sociedade São Luiz e outras Sociedades, no futebol, festas, casamentos, aniversários, batizados e velórios. O Frigorífico Krothé a potência econômica local. Mas a comunidade vive em torno da agricultura familiar. Planta-se, cria-se e come-se de tudo que se planta e cria, especialmente as saborosas cucas, doces e guloseimas da colonização alemã, o churrasco e o chimarrão incorporados à cultura local, a melhor galinhada do mundo, segundo muitos ou todos que dela provaram.

Vivi neste fim de semana os extremos da vida. A pergunta inevitável e sem resposta. Como pode acontecer tudo isso no mesmo dia? No mesmo dia, o ainda jovem casal nos seus 70 anos de casamento feliz. E uma jovem vida vai-se num instante. Uma comunidade feliz nos seus 150 anos. Toda a comunidade. Uma comunidade mais que triste, abalada, nos seus 150 anos. Toda a comunidade.

A história de uma comunidade, quando é comunidade, faz-se assim. Muitas alegrias, festejadas em comum. Muitas tristezas, compartilhadas. E ainda bem que há uma comunidade a amparar os seus nas horas de dor e sofrimento e a repartir a felicidade na hora da felicidade. A fé une a dor de um com a dor do outro. A fé anima o viver de todas e todos. 

Escrevi: “Uma estrela. O brilho das estrelas é eterno,/ ainda que a gente, por vezes, o veja por pouto tempo./ A estrela deixa seu rastro de luz fixado na memória,/ marca o espaço para todos que vêem ou viram sua intensidade./ O amor dado,/ o amor vivido estão e estarão registrados na memória./ Os que viram a estrela,/ dela não esquecerão./ Valentina Eduarda éuma estrela./ Brilhará sempre e para sempre.”  

São 150 anos de vida e experiência. São 150 anos de partilha e solidariedade. 

* Assessor Especial da Secretaria Geral da Presidência da República