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Respeito ao ser humano

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A violência que permeia a vida em sociedade atinge a cada dia níveis degradante de insensibilidade e falta de respeito aos semelhantes. Uma empresa concessionária de serviços públicos, conhecida pelos maus tratos com que trata seus usuários, operários pobres e moradores dos subúrbios do Rio de Janeiro atingiu ao máximo de degradação quando autorizou um trem a passar por cima do cadáver de um homem humilde vendedor ambulante.

O cadáver de alguém além do sentimento religioso que tradicionalmente cerca o sepultamento de toda uma liturgia de despedida merece todo o respeito e tratamento dignificante. Não é incomum ver-se cadáveres de vítimas da violência que atinge diariamente as comunidades mais humildes sendo sem qualquer respeito arrastados pelas vielas, transportados em sacos, carrinhos de material de construção e outros meios igualmente degradantes.

Convém lembrar que todo cadáver, ainda que desconhecido, nasceu do amor de dois seres humanos, cresceu embalado pela fé e pela esperança de uma família que acredita em seu futuro. Como todo ser humano, sorriu, e acalentou sonhos quando criança, por certo amou e foi amado, sentiu-se feliz ou esperava ser feliz algum dia, ainda que tendo uma vida difícil como ambulante, e ainda que tenha uma morte violenta, merece o respeito de um sepultamento segundo a tradição religiosa de sua família.

Do ponto de vista da bioética, um cadáver deve ser visto como “res-humana”, mas ao mesmo tempo deve ser respeitado pelo significado afetivo da memória de um ser humano, e é direito de uma família velar seu ente querido e dar ao seu corpo o tratamento e a destinação da fé que professam.

A falta de respeito demonstrada pelos funcionários de uma concessionária demonstra a falta de condições para a prestação do serviço público que lhe foi confiado. Aliás, a atuação negligente dos agentes públicos de fiscalização, como o secretário de Transporte e as agências reguladoras faz de todos coautores desse crime contra a população que chegou a esse fato gravíssimo porque outras ações igualmente desrespeitosas têm sido toleradas pelo agente público concedente.

A morte de qualquer ser humano, independentemente de sua classe social, deve ser lamentada, chorada e velada não apenas por seus familiares, mas por toda a sociedade que é a mesmo tempo agente e vítima dessa mesma violência. Agente quando assiste impassivelmente aos atos de violência e não se compadece e vítima quando essa violência atinge aos seus mais próximos.

Razão assiste ao irmão da vítima que reclamou que isso não se faz nem com um animal. Muitos prezam tanto seus animais que destinam a eles a mesma liturgia mortuária que aos humanos, homenageando-os com um enterro em cemitérios próprios. Assim começou o direito da criança quando uma enfermeira em Nova York, compadecendo-se do sofrimento de uma criança, reivindicou para ela os mesmos direitos de proteção dado aos animais.

* desembargador do Tribunal de Justiça e membro da Associação Juízes para a democracia