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Laudato si’

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Fomos presenteados, há semanas, pela Encíclica Laudato Si’ (Louvado sejas) do Papa Francisco, assinada em 24 de maio último, na Solenidade de Pentecostes. Aproveito para partilhar um pequeno resumo, não para, evidentemente, substituir a leitura e até mesmo – o que seria muito recomendável – o estudo dela, mas, sim, para estimular a tudo isso.

Introdução 

Embora Francisco não dê o nome de introdução às primeiras considerações contidas no documento, podemos chamá-las assim por ser a abertura do longo texto pontifício que contém uma panorâmica geral da Laudato Si’ e o convite aos cristãos, religiosos em geral e pessoas de boa vontade para que cuidem da natureza.

O Santo Padre começa apresentando a partir das próprias palavras iniciais da Encíclica, o pensamento de São Francisco de Assis, a quem ele escolheu como orientação e inspiração no momento de sua eleição como Bispo de Roma (n. 10), que tem o planeta como nossa “casa comum” a ser preservada e não dominada irresponsavelmente ou devastada. Afinal, somos parte dela, somos terra (cf. Gn 2,7).

A seguir, o Papa recorda os ensinamentos de seus predecessores mais recentes como São João XXIII, o Beato Paulo VI, São João Paulo II e Bento XVI. Além dos Papas, Francisco diz que em outras comunidades cristãs também há preocupação no cuidado com a natureza e cita, de modo especial, o patriarca ecumênico Bartolomeu (n. 9).

Chega-se, finalmente, ao número 15, no qual o Papa Francisco propõe, de modo muito didático, o percurso de seu importante e oportuno trabalho, que se insere entre os documentos da Doutrina Social da Igreja, com as seguintes palavras: “Em primeiro lugar, farei uma breve resenha dos vários aspectos da atual crise ecológica, com o objetivo de assumir os melhores frutos da pesquisa científica atualmente disponível, deixar-se tocar por ela em profundidade e dar uma base concreta ao percurso ético e espiritual seguido.

A partir desta panorâmica, retomarei algumas argumentações que derivam da tradição judaico-cristã, a fim de dar maior coerência ao nosso compromisso com o meio ambiente. Depois procurarei chegar às raízes da situação atual, de modo a individuar não apenas os seus sintomas, mas também as causas mais profundas. Poderemos assim propor uma ecologia que, nas suas várias dimensões, integre o lugar específico que o ser humano ocupa neste mundo e as suas relações com a realidade que o rodeia. À luz desta reflexão, quereria dar mais um passo, verificando algumas das grandes linhas de diálogo e de ação que envolvem seja cada um de nós seja a política internacional. Finalmente, convencido – como estou – de que toda a mudança tem necessidade de motivações e dum caminho educativo, proporei algumas linhas de maturação humana inspiradas no tesouro da experiência espiritual cristã.

Nesse percurso, algumas palavras ou temas-chave são retomados com certa frequência, pois constituem os eixos que norteiam toda a Encíclica (pobres e fragilidade do planeta; formas de poder derivado das tecnologias; outras maneiras de entender a economia e o progresso; o valor de cada criatura etc.).

Capítulo I: O que está para acontecer à nossa casa 

O Papa propõe que antes de entrarmos nas reflexões filosófico-religiosas sobre a questão ecológica observemos – ainda que em uma resenha incompleta (n. 19) – os problemas reais que nos cercam, a fim de tomarmos como nossas as dores do planeta e reconhecermos as contribuições que podemos lhe dar.

Em um primeiro momento, é abordada a poluição, os resíduos perniciosos e a cultura do descarte: as fumaças produzidas por diversos meios, inclusive e, sobretudo, contendo substâncias nocivas à saúde de milhões de pessoas; além delas, há os resíduos diversos, incluindo os tóxicos, que fazem do mundo, nossa casa, “um imenso depósito de lixo” (n. 21) e pouco ou nada é feito para sanar esse mal. Tudo isso se liga à cultura do descarte, tantas vezes denunciada por Francisco por rejeitar não só objetos, mas também os próprios seres humanos, especialmente as crianças por nascer, os jovens e os idosos.

Logo depois, vem a questão da relação do clima como bem comum destinado a todos sem distinção, mas o descuido dele aparece como agente (ainda que não se tenha um em especial, cientificamente comprovada) do aquecimento global, que já causa muitos males à humanidade e ainda causará mais nas próximas décadas se nada for feito, levando à destruição de cidades inteiras em nível mais baixo, dada a queda de geleiras, além de afetar recursos básicos como a agricultura, a pesca e os recursos florestais em prejuízo, especialmente, dos mais pobres. Daí se tornar “urgente e imperioso o desenvolvimento de políticas capazes de fazer com que, nos próximos anos, a emissão de anidrido carbônico e outros gases altamente poluentes se reduza drasticamente, por exemplo, substituindo os combustíveis fósseis e desenvolvendo fontes de energia renovável” (n. 26).

O Papa fala ainda no “problema da água”, que é fonte de vida, de modo que negar seu acesso a alguém é negar-lhe o direito à vida. Todavia, nem sempre os pobres têm direito à água potável, o que é para eles grande motivo de doenças diversas causadas por microorganismos e contaminações químicas. Nesse contexto de escassez de água querem privatizá-la, o que poderá causar uma das grandes brigas das próximas décadas. “A água potável e limpa constitui uma questão de primordial importância, porque é indispensável para a vida humana e para sustentar os ecossistemas terrestres e aquáticos. As fontes de água doce fornecem os setores sanitários, agropecuários e industriais” (n. 28).

É certo que a destruição da natureza e a poluição das águas dos rios e dos mares constituem um grande atentado à biodiversidade dos animais e dos vegetais do planeta, não só dos que mais aparecem, como uma baleia ou um macaco, mas também de pequenas “espécies” como fungos, algas, insetos e répteis igualmente importantes na natureza.

Há, também, o perigo de a iniciativa econômica minimizar os riscos aqui denunciados ou, ao contrário, quererem as grandes potências internacionais, em nome de uma pretensa defesa de determinado território, como a Amazônia ou a bacia fluvial do Congo, dominar outros países com a finalidade de obterem lucros nas riquezas naturais ali escondidas. Portanto, cada país deve ser responsável pelo cuidado com o meio ambiente que tem em seu território.

Nessa atmosfera de descuido e agressão à natureza, aparece, também, a deterioração da qualidade de vida humana e a degradação social que levam à falta de projetos urbanísticos, nos quais as cidades são muito grandes e poluídas e as áreas verdes não servem para os mais pobres, descartados da vida social em geral. Também se nota a influência da mass media e internet na vida das pessoas, desfavorecendo uma comunicação real com o próximo para substituí-la por uma relação virtual que pode levar a um nocivo isolamento.

Esses dados acima bem se justificam na encíclica Laudato Si’, pois não há como falar da degradação ambiental sem tratar dos problemas do ser humano em si. Note-se que toda degradação ou maus tratos ao planeta afetam os homens, em especial os mais necessitados, dado que se falta água potável, por exemplo, como terão recursos financeiros para adquirir água engarrafada, se não têm dinheiro nem para outras coisas básicas? Em suma, esses pobres são um apêndice da sociedade, só lembrados – ao que se vê – quando causam alguns danos colaterais a essa mesma sociedade. Mais: mesmo com o desperdício de aproximadamente um terço da comida produzida no planeta, há quem julgue que é preciso resolver o problema dos pobres e da pobreza por meio da redução de natalidades, recorrendo, inclusive, à “saúde reprodutiva”, eufemismo que esconde o homicídio no ventre materno por meio das várias formas de abortos.

Esquecem-se ainda os poderosos de que somos uma única família humana (n. 52) e deveríamos nos preocupar uns com os outros, pois o que se vê na prática é um desinteresse dos países ricos com a realidade dos países subdesenvolvidos, salvo para controlá-los por meio da tão famosa dívida externa desses pobres para com os ricos, quando, ao inverso, também há uma grande dívida ecológica dos países desenvolvidos para com as nações pobres que recebem das multinacionais, com sede nos países do Norte, depois da exploração de seus territórios, apenas danos ambientais, empobrecimento, esgotamento de algumas reservas naturais etc. (n. 51).

Diante desse quadro, apesar de sadias e oportunas reações no campo ambiental, tais como o saneamento de rios, a recuperação de matas nativas, o embelezamento de paisagens etc., e no campo sociopolítico no qual se destaca o combate à corrupção de um modo mais ou menos geral, ainda há muito por fazer, dado que as reações são falhas e fracas, devido à submissão da política à tecnologia e às finanças, o que, certamente, não beneficia a grandiosa parcela da população mais necessitada (cf. n. 54).

O Papa conclui o primeiro capítulo de sua Encíclica dizendo ser errôneo pensar que o homem, em nome da técnica, deve intervir em tudo o que é da natureza, como também é falho imaginar que não pode tocar em nada. Em concreto, a Igreja não tem uma palavra oficial, mas quer ouvir os cientistas sérios, a fim de chegar a um estudo apto a gerar séria intervenção capaz de auxiliar a humanidade que, em não poucas regiões, já sofre a velocidade das transformações que a levam à quebra do belo plano de Deus.

Capítulo II: O Evangelho da criação 

O Papa começa esse capítulo recordando que para alguns pode parecer estranho falar de Deus ou dá fé em um texto sobre ecologia dirigido a todos os homens, dado que não poucos recusam a Deus e a fé; no entanto, a ciência e a fé devem, cada uma a seu modo, oferecer respostas aos grandes problemas de nosso tempo, dado que na grande riqueza cultural da humanidade também a Igreja Católica tem seu contributo no campo da Filosofia e da Doutrina Social aos homens e mulheres e os leva a se amarem uns aos outros, se cuidarem e cuidarem de toda obra divina.

Francisco transmite parte da imensa sabedoria das narrativas bíblicas sobre a beleza da criação divina: ao criar o homem e a mulher viu Deus que sua obra era muito boa (cf. Gn 1,31). Esse mesmo Deus não abandona suas criaturas ao destino cego, mas protege a cada uma com especial desvelo (cf. Jr 1,5). No relato bíblico, do Gênesis, há nítida visão do relacionamento tríplice do homem com Deus, com o outro e com a terra. No entanto, o pecado rompeu essa harmonia primeira, quebrando também o sentido original de dominar a terra e de cultivá-la e guardá-la, gerando conflito na forma de entender essa passagem bíblica de grande beleza (cf. Gn 1,28; 2,15; 3,17-19).

Daí dizer São Boaventura que São Francisco de Assis retomou essa inocência primeira ao se relacionar bem com todas as criaturas, mas é contraditado pelas forças destruidoras de nosso tempo, incluindo os estragos, guerras e violências de todo tipo. Portanto, é errôneo dizer que Deus mandou usar da terra de qualquer modo (Gn 1,28). Ao contrário, enquanto dono (cf. Sl 24/23,1; Dt 10,14; Lv 25,23), Ele nos manda cultivar o terreno com o nosso trabalho e também guardá-lo sob nossa proteção, como quem a usa para seu proveito e do próximo sabendo guardar a terra às futuras gerações, respeitando as leis da natureza (cf. Sl 148 5b-6) com tudo o que nela vive (Dt 22, 4.6). Assim, quando o homem descansa, descanse também seu boi e seu jumento (EÊx 23,12).

Na natureza que podemos usar responsavelmente, está presente o louvor a Deus em todas as criaturas (cf. Sl 104/103,31), pois são frutos da Divina Sabedoria (cf. Pr 3,19), porém manchadas pelo pecado. Quando Caim matou seu irmão teve problemas com Deus e com a terra (cf. Gn 4,9-12) e todas as vezes em que esse tripé (Deus, eu, terra) é rompido a vida corre perigo e a terra se enche de violência (cf. Gn 6,13). Daí escrever o Papa que “nestas narrações tão antigas, ricas de profundo simbolismo, já estava contida a convicção atual de que tudo está inter-relacionado e o cuidado autêntico da nossa própria vida e das nossas relações com a natureza é inseparável da fraternidade, da justiça e da fidelidade aos outros” (n. 70).

Mesmo com a aliança quebrada e Deus estar arrependido de ter feito o homem (cf. Gn 6,5-6), usa de Noé para salvar a humanidade, dando-lhe a possibilidade de um reinício. Isso implica respeito às leis rítmicas da natureza, inscritas, por exemplo, no Shabbath, o sétimo dia, quando Deus descansou da criação (cf. Gn 2,2-3; Ex 16,23; 20,10). Ademais, de sete em sete anos, havia o ano sabático (cf. Lv 25,1-4) para descanso da terra, e a cada cinquenta anos o perdão universal no ano jubilar (cf. Lv 25,10), de modo a favorecer o bom uso da terra e ajudar aos pobres e necessitados (cf. Lv 19,9-10).

Por fim, os Salmos nos convidam a louvar a Deus (Sl 136/135,6; 148,3-5), enquanto os profetas chamam o povo a recuperar suas forças nos momentos difíceis, demonstrando, assim, a ternura de Deus que opera até milagres em favor dos seus (cf. Jr 32,17.21; Is 40, 28b-29), especialmente sustentando a fé desse mesmo povo no cativeiro da Babilônia e, séculos depois, a fé dos cristãos nas perseguições feitas pelo Império Romano pagão (cf. Ap 15,3). Daí se entende que só Deus, como dono e pai, pode dispor do mundo como Ele quiser; sem essa certeza da fé n’Ele, o ser humano quer impor aos outros suas vontades e submetê-los junto com a natureza criada aos seus caprichos.

O criador do mundo é Deus e Ele fez cada criatura com seu valor em si mesma, pela sua palavra (cf. Sl 33/32, 6) por amor (cf. Sb 11,24) e levou a tradição judaico-cristã a demitificar a natureza, ou seja, a não mais atribuir aos seres criados poderes divinos (a árvore, os rios, as pedras seriam entes sagrados), mas, sim, a vê-los como obras das mãos de Deus e que devemos nos empenhar em cuidar, enquanto seres racionais que somos. Abertos, portanto, a tantas coisas, estamos também voltados à transcendência ou ao contato com o próprio Deus e temos a liberdade de agir bem ou mal, porém, mesmo quando agimos mal, Deus pode tirar do mal bens muito maiores.

Mesmo com suas limitações de criaturas, o homem e a mulher são seres especiais na obra da criação, pois não proveio de nenhuma evolução, mas de uma ação direta de Deus criador e, por isso, não pode ser reduzido à categoria de objeto. No entanto, elevado ao plano da graça divina por Jesus, o ser humano é chamado a servir (cf. Mt 20,25-26) e nesse serviço chegar, junto com toda a natureza, cada um a seu modo, a Deus por meio de Cristo, centro para o qual tudo converge (cf. n. 83).

A harmonia da criação faz refletir a harmonia de Deus em cada ser criado, na qual o ser humano ocupa um lugar central, sem, porém, menosprezar os demais seres criados em geral. Afinal, quem já viveu em meio à natureza com seus riachos, matas e montanhas sente-se saudoso disso e há de lutar para ver tudo restaurado como um livro, no qual o homem lê a grandeza de Deus e ouve as suas mensagens por meio das criaturas (que, embora belas, não se confundem com o Criado como parte d’Ele, mas apenas O refletem, n. 88), cuja multiplicidade e interdependência lembram a grandeza de quem as fez: Deus, o Senhor louvado por São Francisco de Assis no Cântico das criaturas, que se inicia com as palavras Louvado sejas!, título da Encíclica.

Este mundo harmonioso em si mesmo não é algo sem dono, ele é de Deus, de modo que nós, enquanto seres racionais a ocuparmos um lugar privilegiado na criação, não podemos nos esquecer da fraternidade universal a nos levar à amizade com toda a natureza criada. Isso, contudo, nos convida também a não nos esquecermos do próximo em nome de uma indiferença na qual uns parecem ter mais direitos do que outros, ou onde o tráfico de animais é condenado, mas o comércio ilícito de seres humanos não é, e nem a miséria a que o próximo está submetido nos toca. Os indiferentes a isso devem repensar a comunhão com o todo.

De mais a mais, os bens de Deus são emprestados a todos os homens e para o bem comum, especialmente a terra. Embora a propriedade privada seja um direito básico na civilização cristã, ela não pode estar acima do bem do outro, mas a serviço dele, de forma que todos, indistintamente, deveriam ter seu pedaço de chão para plantar, contando com todo apoio governamental básico. Ademais, a diferença abissal entre pobres e ricos há de ser combatida, dado que apenas 20% dos homens possuem os recursos da natureza, enquanto o resto fica com o que sobra nesse verdadeiro roubo da dignidade humana (n. 95).

Ao concluir o capítulo II, o Papa nos convida a olhar o mundo com o olhar de Cristo que nos revelou Deus como o Pai por excelência (cf. Mt 11,25) a quem nada passa despercebido (cf. Lc 12,6; Mt 6,26). Entretanto, importa lembrar que o Senhor Jesus só pode nos falar e demonstrar sua harmonia com a natureza porque Ele vive de modo harmonioso com ela, de tal forma que até o vento e o mar Lhe obedecem (cf. Mt 8,27), age como os demais homens (cf. Mt 11,19) e trabalha a maior parte de sua vida como carpinteiro (cf. Mc 6,3), de modo que cada ser humano ao trabalhar em união com Deus ajuda Cristo na sua obra redentora.

No entanto, a vida de Cristo não se resume entre a Encarnação e a Cruz, pois tem a Ressurreição. Ele é o centro do cosmo e veio para recapitular ou resgatar tudo o que estava perdido para o Pai (cf. Cl 1,19-20; 1Cor 15,28) com a redenção físico-mística, ou seja, por meio de seu contato com toda a natureza, Ele a redimiu e tornou-a cheia de sua presença luminosa.

Capítulo III: A raiz humana da crise ecológica

No número 101, o Papa sintetiza a razão de ser deste capítulo III: “Para nada serviria descrever os sintomas, se não reconhecêssemos a raiz humana da crise ecológica. Há um modo desordenado de conceber a vida e a ação do ser humano, que contradiz a realidade até ao ponto de arruiná-la. Não poderemos deter-nos a pensar nisto mesmo? Proponho, pois, que nos concentremos no paradigma tecnocrático dominante e no lugar que ocupa nele o ser humano e a sua ação no mundo”.

Isso posto, Francisco fala do paradoxo causado pelo progresso tecnológico que trouxe ao ser humano muita alegria nos avanços nas mais diversas áreas, incluindo as ciências médicas e o desenvolvimento sustentável; mas também acarretou trágicas conseqüências, como a manipulação da vida humana no campo da biotecnologia e em outros meios, bastando-nos lembrar que, em pleno século XX, a bomba atômica foi lançada no Japão. Também outros meios tecnológicos serviram para alimentar o poder de sistemas nefastos como o nazismo, o comunismo e outros regimes totalitários responsáveis por milhões de mortes. Demonstram com isso que o ser humano do nosso tempo parece não saber usar o poder, o que é grave e requer uma educação séria nesse âmbito (n. 105).

A tecnologia assumiu para o homem uma função primordial de vida, de modo que se antes ela o ajudava a secundar a natureza, hoje o leva a dominá-la sem escrúpulos e tornar-se, ao mesmo tempo, escravo da técnica que, por sua vez, domina a economia e a política, inclusive com mentiras de que ela resolverá todos os grandes problemas pelos quais a humanidade passa.

Na verdade, porém, quando se fala em tecnociências se nota um saber fragmentado, no qual falta um olhar de conjunto e especialmente a imprescindível colaboração da filosofia e da ética, únicas instâncias capazes de levar, no plano racional, o ser humano a não se deixar escravizar pela máquina ou pela vida fácil que os meios modernos oferecem. É preciso se opor a isso, mas como, se estamos tão acostumados a toda essa parafernália à nossa volta? – Por meio de uma verdadeira revolução cultural que não nos quer levar de volta à Idade da Pedra, mas também não pode deixar de deter essa marcha doentia das técnicas escravizantes do ser humano do século XXI.

Tais problemas nascem do “antropocentrismo moderno”, ou seja, do homem como centro de tudo, esquecendo-se de Deus, do próximo e também do mundo que o cerca, dado por Deus para o seu uso respeitoso, especialmente das leis que a própria natureza impõe no plano físico e moral. Por muito tempo, se interpretou erradamente a antropologia cristã da relação “homem e mundo”, esta é de administração não de dominação humana, como faz um dono, se assim for levará a desvarios.

Sim, desvarios, pois a própria natureza, obra de Deus, fala por si, ensina o ser humano, mas também, quando atingida indevidamente, cobra desse mesmo homem o mal que ele lhe causou. É preciso, pois, renovar o homem em sua mentalidade, criar um homem novo para saber administrar esse mundo, o que, evidentemente, não se dá pelo biocentrismo, que também causa problemas, mas sim pela conversão pessoal no relacionamento do ser humano com o mundo e com o próximo, superando as dialéticas falsas dos últimos tempos.

Reforça o Papa que não saberá cuidar do mundo quem não é capaz de defender a vida humana no ventre materno, em seu n. 120: “Uma vez que tudo está relacionado, também não é compatível a defesa da natureza com a justificação do aborto. Não parece viável um percurso educativo para acolher os seres frágeis que nos rodeiam e que, às vezes, são molestos e inoportunos, quando não se dá proteção a um embrião humano, ainda que a sua chegada seja causa de incômodos e dificuldades: ‘Se se perde a sensibilidade pessoal e social ao acolhimento duma nova vida, definham também outras formas de acolhimento úteis à vida social’ (Bento XVI. Caritas in veritate, 28)”.

Ora, esse antropocentrismo gera todas as formas de relativismo: o doutrinário e o prático e este último é, segundo Francisco, o pior, pois leva a adorar o poder, a fazer do outro, meu próximo, mero objeto, a fomentar o crime, o tráfico de drogas que mata e o comércio ilícito de órgãos para salvar ricos ou servir de experimentos, o descarte das crianças, especialmente embriões indesejados pelos pais, e dos idosos que já não produzem, junto com o lixo depositado no meio ambiente. Isso tudo, porque tal relativismo impede ao homem de ver verdades perenes na própria natureza.

Outra consequência do ser humano envolto na escravidão da técnica é falta de trabalho, muito bem descrito por São João Paulo II na Laborem Excercens e lembra que Deus criou o ser humano para trabalhar no mundo recém-criado (cf. Gn 2,15; Eclo 38,34; 38,4), isso, porém, não se restringe apenas ao trabalho manual, mas a todo tipo de afazer lícito que leve à relação com os demais seres humanos. Por meio dele é possível se santificar, como já propunham os antigos monges, especialmente a partir de São Bento de Núrsia com o seu conhecido lema: Ora et labora (Reza e trabalha!), que revolucionou o mundo da época e é válido até hoje (n. 126).

No entanto, todo trabalho só tem valor se não visa, em primeiro lugar, ao lucro, mas o ser humano em seu bem-estar material, moral e espiritual. Desse modo, o trabalho é digno e dignificante, daí só ser bom dar dinheiro aos pobres a fim de oferecer-lhes um socorro imediato ou paliativo, pois o que realmente o dignificará será o trabalho no qual ele mesmo possa ganhar o seu sustento. Isso alerta também para que não coloquemos a máquina no lugar do homem, nem deixemos que os grandes proprietários façam os pequenos produtores sucumbirem, bem como lutemos para que os empresários sejam fontes de trabalho aos moradores dos locais em que se instalam.

Por fim, o Papa se volta para as questões biotecnológicas, muito em voga nos nossos dias, dizendo, alicerçado nos ensinamentos do Papa São João Paulo II e do próprio Catecismo da Igreja Católica, que é lícito fazer pesquisas razoáveis com animais, desde que isso possa poupar o ser humano e não faça os bichos sofrerem inutilmente. Também é lícito, ainda que discutível, pois não se sabe bem as consequências ainda, o uso de organismos modificados geneticamente (OMG), uma vez que também a própria natureza faz, naturalmente, suas modificações genéticas.

Pede-se ainda a valorização dos pequenos produtores, não raras vezes engolidos pelos latifúndios e o seu direito de produção, dentro de um debate claro e não ideologizado a respeito do trato dos recursos naturais a nós disponíveis para uso cuidadoso e responsável. No último parágrafo do capítulo (n. 136), Francisco critica a contradição de grupos de ecologistas que, com razão, defendem os animais irracionais, mas não se importam com os sofrimentos de um embrião humano vivo, merecedor de todo respeito na obra da criação.

Capítulo IV: Uma ecologia integral

Esse capítulo trata da ecologia abordada de modo integral, ou seja, nas suas relações com todas as demais forças da sociedade em seus impactos ambientais, econômicos e sociais, no qual a família ocupa relevante papel.

Francisco começa definindo a ecologia como o estudo das relações entre os organismos vivos e o meio ambiente onde se desenvolvem (n. 138) e afirma que tudo no universo está interligado, desde os seres microscópicos até os grandes seres visíveis a olho nu a longa distância, de modo que para cuidar bem do meio ambiente é necessário ter uma visão mais ampla e menos fragmentada da realidade. Só assim é possível buscar soluções integrais, levando em conta a sociedade como um todo, especialmente os pobres, sempre mais atingidos com as mudanças climáticas.

Para que algo bom seja feito, é preciso dar liberdade aos cientistas desse campo e ter em mente que somos parte do ecossistema, dando exemplo de uso sustentável de tudo sem nos deixarmos levar apenas e, sobretudo, pelo que dita o mercado, mas defender uma visão integral e integradora da obra criada (n. 141). Visão que leve a pensar também nas instituições sociais, especialmente do Estado, atingidas, às vezes, pela corrupção e em toda a rede que se forma em torno dela, desde a família e a comunidade local até as relações internacionais.

Nessas relações faz-se importante garantir a eficiência da lei na defesa dos interesses de todos, pois em alguns países ela se torna letra morta, tendo um sistema legal exemplar, mas abusos gigantescos da natureza com poucas punições aos responsáveis. A partir disso, o Papa lembra o uso das drogas, que podem começar em classes ou regiões ricas e estender-se às mais pobres, corrompendo e destruindo vidas da mesma forma como se destrói o meio ambiente.

Há, também, segundo Francisco, uma ecologia cultural que leva a respeitar os valores caros à determinada cultura com seus hábitos e símbolos, fazendo-os sempre preservar a sua cultura original. Daí, em todas as mudanças significativas que forem ocorrer, seja feito um diálogo científico com a cultura popular, a fim de preservá-la, haja vista que os poderes econômicos tendem a homogeneizar as culturas; isso é errôneo, pois leva ao fim de muitas delas, especialmente de populações aborígenes que têm a terra, a qual cultivam com respeito, não raras vezes degradadas pelos interesses de extrativistas e pecuaristas desrespeitadores da natureza.

Volta-se o Papa, a seguir, para a ecologia do dia a dia das pessoas, dizendo que a qualidade de vida de alguém depende do lugar em que se vive. Daí ter vida diferente quem mora em um ambiente poluído, visual ou acusticamente, e os que vivem em locais sadios. No entanto, alguns superam esse condicionalismo pela amizade recíproca e pelo desenvolvimento da alegria entre os pobres, não obstante todas as suas limitações materiais. Parece que mesmo dos problemas nascem as soluções, ainda que não cabais.

No entanto, há uma gravidade que não pode ser esquecida: nesses ambientes desordenados, os adolescentes e jovens, em especial, são cooptados por organizações criminosas, especialmente nas periferias sem grande infraestrutura, mas mesmo aí também se vê aqueles que resistem à tentação de ceder ao crime, mantendo-se livres dessa forma de escravidão causado, às vezes, por um projeto de reurbanização mal organizado.

Falar em casa (residências) é lembrar-se de que um lar, no sítio ou na cidade, é parte da dignidade humana ou “questão central da ecologia” (n. 152) que envolve não só os pobres, mas também outros segmentos da sociedade. Daí a luta para que cada um possua seu alojamento é fundamental, no entanto, que tudo se faça pensando no bem comum e não no imediatismo destruidor das culturas ou dos costumes locais.

Relembra ainda a precariedade dos transportes urbanos e rurais, o inchaço das cidades com muitos carros nas ruas, a poluição daí derivada, os gastos advindos e também os problemas de superlotação dos transportes coletivos, que, por um lado, podem trazer boas relações entre os passageiros, mas também dá ocasião a inseguranças diversas. Na zona rural, o trabalho, não raras vezes, se reduz à escravidão de quem se dedica ao serviço braçal.

Em meio a tudo isso, aparece – como já lembrava o Papa Bento XVI – o menosprezo pelo corpo humano, tido como posse da própria pessoa, o desgosto com ele e a tentativa de apagar as diferenças sexuais, por não querer se confrontar com ela no seu dia a dia, o que, sem dúvida, é de grande prejuízo para a ecologia humana (n. 155).

Para que a verdadeira ecologia humana aconteça é preciso trabalhar pelo bem comum, no qual todos e cada um possam desfrutar dos direitos fundamentais e inalienáveis para a sua vida e desenvolvimento, especialmente dentro da família, célula basilar da sociedade, e na própria sociedade, a quem o Estado deve garantir a segurança, de uma forma especial no cuidado aos “descartados”, ou seja, os pobres aos quais, hoje, mais do que nunca, se deve fazer uma opção preferencial (n. 158).

Também precisamos pensar nas futuras gerações, nos perguntando que mundo queremos deixar para eles. Afinal, a terra é por nós recebida a fim de ser cuidada e passada adiante, mas não com sérios problemas, incluindo catástrofes advindas do mal uso que hoje fazemos da natureza criada. Todavia, a falta de ética que move o mundo de nossos dias nos faz deixar de pensar no próximo para nos fecharmos em nossa subjetividade e esquecermos dos outros, sobretudo dos excluídos, quando, na verdade, a começar pela família (relação pais e filhos), deveríamos ser solidários uns para com os outros, já no aqui e agora e depois para com os que virão.

Capítulo V: Algumas linhas de orientação e ação

A meta deste capítulo é encontrar, pelo diálogo, soluções para a grande espiral de destruição em que o planeta está envolvido. Esse diálogo começa na política internacional, que já deu grandes passos para um projeto comum da humanidade em favor dos problemas do meio ambiente, especialmente no que toca ao desenvolvimento da agricultura sustentável e diversificada, energias renováveis e pouco poluentes, a conservação dos recursos florestais e a garantia de água potável a todos.

Certo é que a humanidade na era pós-industrial foi muito irresponsável, mas espera-se que a do início de século XXI seja mais comprometida com o bem do universo e de cada ser nele presente, ainda que muito se note a falta de comprometimento político, não obstante as grandes Conferências mundiais sobre temas diversos de ecologia: a Cimeira de 1992, no Rio de Janeiro, sobre a terra; a Declaração de Estocolmo (1972) sobre o ecossistema; a Convenção de Basileia a respeito dos resíduos perigosos; as de Viena e Montreal voltadas para a camada de ozônio e a Rio+20 sobre as mudanças climáticas, cujo documento final foi, infelizmente, bastante ineficaz.

Outro problema que se põe é sobre os gastos na mudança de energias mais poluentes para as menos poluentes: os países ricos deverão ajudar os países pobres nessa passagem, dado que estes já têm grandes dificuldades no combate à miséria de seus cidadãos, embora nem por isso possam deixar de lado o combate à poluição que a todos afeta. Na mesma linha está o cuidado com os oceanos. Não deveria ser tarefa desta ou daquela nação, mas de uma força internacional, como já pensava o Papa Bento XVI, contando, evidentemente, com efetivos apoios diplomáticos internacionais, na teoria e na prática, dado que sem eles tudo fica difícil, seja a erradicação do aquecimento global, seja o combate à pobreza (n. 173 e 175).

No entanto, não bastam apenas os esforços internacionais, mas se requerem também medidas nacionais e locais a fim de ajudar os vencidos oprimidos pelos vencedores no seio de cada Nação, Estado ou Município por meio de leis que levem ao bem comum e ao reto uso dos recursos naturais e não só de combates imediatos à poluição ou ao lixo tóxico por meio de jurisprudências feitas, via de regra, em períodos eleitorais, mas que não resolvem o problema ecológico, dado que este é trabalho de longo prazo.

Ora, muitos políticos pensam mais na politicagem do que na verdadeira política que visa ao bem comum, com projetos a serem desenvolvidos em tempo que ultrapassa um mandato eletivo apenas. Fora, porém, do ambiente político-administrativo propriamente há iniciativas populares importantes no que toca à luta por energias renováveis e não poluentes, agricultura familiar não predatória, reciclagem do lixo e venda dos excessos de produção, pela formação de cooperativas, especialmente entre os aborígenes, reafirmando, assim, o verdadeiro sentido de comunidade.

Para que isso ocorra é necessária uma pressão popular ordeira, a fim de que os governos assumam um projeto ecológico sério e com grandes metas a serem alcançadas, independentemente se será ou não bem compreendido pelos seus contemporâneos. Daí a questão: a troca de que esse político faria isso? – responde o Papa que faria como reconhecedor da dignidade que Deus lhe deu e com a responsabilidade que tem perante o próximo; ele será, por isso, reconhecido pela história (n. 181).

Nesse processo de debates e ações sobre o meio ambiente é preciso que ninguém fique excluído, que haja consenso, que sejam avaliados os riscos e benefícios do que será feito e sejam rejeitadas as propostas favorecedoras do consumismo imediatista, cercadas, não raras vezes, de corrupção e desinteresse pelos pobres. Ainda que a Igreja não entre na atuação concreta das questões em si (n. 188), Ela incentiva todo debate honesto sobre os assuntos ligados à vida humana sadia e ao meio ambiente. Aliás, “em qualquer discussão sobre um empreendimento, dever-se-ia pôr uma série de perguntas, para poder discernir se o mesmo levará a um desenvolvimento verdadeiramente integral: Para que fim? Por qual motivo? Onde? Quando? De que maneira? A quem ajuda? Quais são os riscos? A que preço? Quem paga as despesas e como o fará? Neste exame, há questões que devem ter prioridade. Por exemplo, sabemos que a água é um recurso escasso e indispensável, sendo um direito fundamental que condiciona o exercício doutros direitos humanos. Isto está, sem dúvida, acima de toda a análise de impacto ambiental duma região” (n. 185).

Há, no entanto, o perigo de a política submeter-se aos paradigmas eficientistas da tecnocracia, esquecendo-se do valor da vida, de um modo especial da vida humana tão desvalorizada; o dinheiro predomina nas relações humanas apenas visando ao lucro, sem levar em conta a biodiversidade e os pobres. Aqui é preciso, no entanto, evitar dois perigos: um que tenta segurar qualquer progresso como se fosse mau, e outro desejoso do progresso a qualquer custo, esquecendo-se dos graves problemas da humanidade, pois imbuído da cultura do consumismo e da destruição.

Ora, é necessário converter-se ao modelo de desenvolvimento global, como pedia Bento XVI, a fim de que entre o ganho e a preservação ambiental não se interponham apenas meias-medidas ditadas pelo capital que leva ao lucro de poucos às custas do sacrifício de muitos, como ocorre nas sociedades cheias de individualismo e êxitos em que a política é comandada pela economia e o desejo de poder, ou nos Estados totalitários. Daí a questão colocada e respondida por Francisco: “Qual é o lugar da política? Recordemos o princípio da subsidiariedade, que dá liberdade para o desenvolvimento das capacidades presentes a todos os níveis, mas simultaneamente exige mais responsabilidade pelo bem comum a quem tem mais poder” (n. 196).

É preciso reconhecer que as ciências empíricas são limitadas, de modo que podem se enriquecer no diálogo com outras fontes do saber, incluindo as religiosas, dado que seria anticientífico negar o valor de um texto só porque veio de um ambiente religioso. Todavia, é preciso que todas as pessoas de fé – maioria da humanidade (n. 201) – sejam coerentes, na prática, com o discurso que fazem e, reconhecendo os erros passados, talvez causados pelos condicionamentos culturais da época, saber que eles não vêm da fonte, Deus, mas dos fiéis que O entenderam mal. Nada disso, impede, no entanto, o diálogo entre as diversas religiões do mundo entre si e com outras fontes do saber, inclusive com grupos ideologizados, valendo-se para isso, no fundo, da oração e da ascese pessoal.

Capítulo VI: Educação e espiritualidade ecológicas

Se é certo que muitas coisas precisam ajustar seu rumo, também o é que a própria humanidade necessita de mudanças na sua consciência de que tem uma origem comum, uma pertença recíproca e um futuro partilhado por todos, o que implica grande desafio cultural, espiritual e educativo para um longo processo de mudança (n. 202).

Ora, isso se dá por uma transformação radical no próprio estilo de vida, que o Papa chama de “regeneração”, pois vivemos em um mundo dominado pelo mercado, e isso leva as pessoas a se sentirem livres para comprar tudo o que desejam, mas, na verdade, essa falsa liberdade é uma escravidão ao poder econômico e financeiro do qual precisam se libertar.

Essa libertação faz-se necessária, pois no egoísmo coletivo em que vivemos cada um se acha a fonte de todas as normas sociais: o que é bom para ele, é bom para os outros. Isso não é correto, precisamos recuperar a dignidade do ser humano, dignidade que ninguém tem o direito de lhe tirar (n. 205). A recuperação dessa forma autêntica de ser humano poderá trazer mudanças no mercado, pois se as pessoas se convertem e mudam o seu estilo de vida, não se adaptando ao mercado, pode haver um processo inverso (o mercado adaptar-se a elas), o que será de grande valor à humanidade na superação do individualismo e acolhimento dos outros, repensando os problemas de nossa casa comum, o planeta.

Essa conversão nos levará a novos hábitos, por meio de uma educação séria que não só informa, mas também transforma pela conscientização e não apenas por imposição de leis. Uma educação que ensine coisas básicas como não desperdiçar água, separar o lixo orgânico e inorgânico, apagar as luzes do cômodo vazio, cozinhar apenas o que vai comer para evitar desperdícios etc. Tal educação é tarefa de muitas instituições, também da Igreja, e deve ser feita por meio da escola, da família, dos veículos de comunicação, da catequese, entre outros, mas com acento especial à família, lugar onde a vida é acolhida e ensinada.

Sem descuidar da beleza da natureza, cada um viva a austeridade de usar do mundo apenas aquilo que precisa com equilíbrio e desse modo teremos uma nova relação do ser humano com a vida, a sociedade e a natureza. Escreve Francisco: “A educação ambiental tem vindo a ampliar os seus objetivos. Se, no começo, estava muito centrada na informação científica e na consciencialização e prevenção dos riscos ambientais, agora tende a incluir uma crítica dos ‘mitos’ da modernidade, baseados na razão instrumental (individualismo, progresso ilimitado, concorrência, consumismo, mercado sem regras) e tende também a recuperar os distintos níveis de equilíbrio ecológico: o interior consigo mesmo, o solidário com os outros, o natural com todos os seres vivos, o espiritual com Deus. A educação ambiental deveria predispor-nos para dar este salto para o Mistério, do qual uma ética ecológica recebe o seu sentido mais profundo. Além disso, há educadores capazes de reordenar os itinerários pedagógicos duma ética ecológica, de modo que ajudem efetivamente a crescer na solidariedade, na responsabilidade e no cuidado assente na compaixão” (n. 210).

Fundamentado nos vinte séculos de história da Igreja, o Papa recorda, centrado no Evangelho, que é preciso, por meio não só da doutrina, mas da mística, uma conversão ecológica que nos leve a deixar os erros e vícios pessoais a fim de nos tornarmos, de fato, guardiões da obra de Deus como parte essencial do compromisso cristão. Que saiamos do nosso individualismo a fim de agirmos em favor de todos os irmãos e do todo, que é a criação inteira. Tendo Cristo como centro da redenção de toda a humanidade ao tomar contato com tudo o que existe neste mundo e que disse serem até os pássaros queridos por Deus, o homem, por seu lugar especial na criação, não pode se arvorar como dono de tudo, mas, sim, cuidador da obra divina em uma verdadeira fraternidade universal, ao estilo de Francisco de Assis.

Quem se põe a cuidar da criação, obra de Deus, tem alegria e paz. De um modo especial, os religiosos contemplativos conseguem se opor, por sua sobriedade e austeridade, ao mercado e, assim, alegram-se com o pouco que livremente escolheram receber e são gratos ao Senhor por isso. Ora, cada um pode a seu modo viver essa sobriedade do ter, se colocarem o centro de suas vidas em Deus e não em si mesmos, e se dedicarem às diversas formas de auxílio ao próximo (música, arte, caridade etc.) chegando a uma profunda harmonia interior e com o universo que nos cerca (cf. Mt 10,21) a partir de um coração puro e da consciência de que tudo é de Deus. Daí a importância da recuperação do costume piedoso de rezarmos nas horas das refeições – e o Papa insiste nisso – agradecendo o que chega à nossa mesa a partir da natureza por fruto do trabalho humano (n. 227).

A conversão e a educação no respeito à natureza levam à fraternidade universal, ou seja, com o próximo e com toda a natureza, o que implica em amor recíproco, perdão, amor aos inimigos, aceitação dos fenômenos naturais que não podemos mudar, sabendo, porém, de nossa responsabilidade no cuidado com o meio ambiente a partir de pequenos gestos diário, como fez Santa Teresinha do Menino Jesus, com a certeza de que cuidar da obra de Deus é fazer caridade. Recorda-nos ainda Francisco que a política profissional é um dos grandes meios de defender a natureza, mas como nem todos sentem vocação para ela, podem ajudar em associações de bairros ou outras que se voltam especialmente para o cuidado da obra de Deus e ajudam-nos a libertar-nos da indiferença perante o mundo criado.

Afinal, o universo só se desenvolve e se preenche em Deus, de modo que, olhando para ele, devemos contemplar o Senhor. Vários santos, em diversas épocas, ensinaram que contempla melhor quem se relaciona bem com a natureza, pois tudo o que nela tem de bom remete-nos a uma analogia com Deus, o sumo Bem. Todavia, é nos sacramentos que vemos os seres naturais (a água, o óleo, o trigo etc.) serem transformados, por força divina, em vida sobrenatural aos fiéis, de modo que não é possível fugir da natureza para servir a Deus. Ao contrário, toda a natureza foi elevada por Cristo na Encarnação, e na Eucaristia Ele mesmo quis fazer-se pão e entregar-se a nós para ser comido pelas criaturas, de modo que a participação na Santa Missa, especialmente aos domingos, deve ser o centro da semana do cristão. Dia de louvor, repouso a si e aos seus, inclusive aos animais (cf. Ex 23,12). 

Com essas reflexões, o Papa ruma para a conclusão do último capítulo, lembrando-se da doutrina trinitária na criação com as seguintes belas palavras do n. 238: “O Pai é a fonte última de tudo, fundamento amoroso e comunicativo de tudo o que existe. O Filho, que O reflete e por Quem tudo foi criado, uniu-Se a esta terra quando foi formado no seio de Maria. O Espírito, vínculo infinito de amor, está intimamente presente no coração do universo, animando e suscitando novos caminhos”. O mundo foi criado pelas três Pessoas como um único princípio divino, mas cada uma delas realiza esta obra comum segundo a própria identidade pessoal. Por isso, ‘quando, admirados, contemplamos o universo na sua grandeza e beleza, devemos louvar a inteira Trindade’ (São João Paulo II, Ecclesia de Eucharistia).

Afinal, a natureza é espelho da Trindade, como diz São Boaventura, mas devido ao pecado essa verdade fica ofuscada a nós hoje; o ser humano é um ser de relações, a exemplo das três pessoas divinas que são relações subsistentes entre si, de modo a convidar-nos à comunhão com Deus, com o próximo e com toda a natureza. 

Aqui ocupam papel de destaque a Virgem Maria, cuidadora de Jesus e deste mundo, e São José, protetor da Sagrada Família e que hoje nos ajuda a ser guardiões do mundo em que vivemos, pois com a intercessão deles chegaremos ao dia sem fim para contemplarmos o Senhor face a face no céu; será dia de glória em que os pobres, enfim libertos, estarão em Deus juntos com toda a criação transformada. Daí o convite de Francisco, ao encerrar suas reflexões jubilosas e dramáticas, à oração, força capaz de nos dar esperanças nas lutas deste mundo.

Orani João, Cardeal Tempesta, O.Cist. -Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ