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Ainda o 'Laudato Si': o Deus criador

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O  papa Francisco ancora sua reflexão sobre a ecologia na Escritura.  Diz, então, que na Bíblia «o Deus que liberta e salva é o mesmo que criou o universo. [...] n’Ele se conjugam o carinho e a força»  (73).  A narrativa da criação é central para refletir sobre a relação entre o ser humano e as outras criaturas e sobre como o pecado rompe o equilíbrio de toda a criação no seu conjunto: «Essas narrações sugerem que a existência humana se baseia sobre três relações fundamentais intimamente ligadas:  as relações com Deus, com o próximo e com a terra. Segundo a Bíblia, essas três relações vitais romperam-se não só exteriormente, mas também dentro de nós. Esta ruptura é o pecado» (66). 

A Palavra criadora de Javé é elemento constitutivo da natureza na sua origem e atividade (Is 40,26; Jó 37,6; Sl 147,15).  E o cosmos é fonte de revelação de Deus.  É Deus, portanto, que faz existir. Que chama as coisas de onde não são para que sejam. E o faz por sua palavra.  Deus diz e aquilo é feito do nada.  Só Deus é Deus, como será repetido muitas e muitas vezes na Bíblia, no sentido de que só ele é capaz de criar a partir do nada, o cosmos e tudo que existe (cf. Is 40,25-30; Jó 38).

Porém, Deus cria colocando ordem no criado.  Sua Palavra estrutura o caos.  Ao mesmo tempo, a Bíblia nos relembra que o Criador dialoga com a sua criatura humana, o que é uma maneira de conceder-lhe um imenso respeito.  Tudo isso numa ausência absoluta de violência, numa espécie de doçura fundante que será sustentáculo para o Sermão da Montanha posteriormente, no NT, quando será proclamada a perfeição do Pai (cf. Mt 5).

Neste criar no tempo, “no princípio”, o relato bíblico não sonha em opor à eternidade de Deus a eternidade do mundo criado.  Somente Deus é princípio e começo de tudo que existe e o mundo vem depois, ainda que não se possa estabelecer datas cronológicas para essa posterioridade do criado.

Esse “começo”, essa “origem sem origem” que só encontra sua fonte na inefável Paternidade divina, é incompreensível sem um “fim”.  Mas este fim, sem o qual o mundo perderia seu dinamismo, nos é radicalmente desconhecido.  Este desconhecimento nos impede de buscá-lo entre os fenômenos deste mundo.  Este fim não compete aos cientistas.  E é desconhecido do próprio Filho, que deixa este segredo para o Pai (cf. Mt 24,36).    

De certa maneira, a encíclica Laudato Sí recolhe o  esforço que vem fazendo a teologia cristã, nos últimos tempos, para debruçar-se sobre a problemática da Criação. Esta atitude  denota uma tomada de consciência, por parte dos cristãos, de que o que está  em jogo na questão ecológica é muito mais que um novo tema a ser trabalhado pelo pensamento teológico. E, sim, o futuro das relações homem-natureza-Deus, ou seja, o próprio conceito de Deus que é central ao cristianismo : Deus Pai, autor da vida, criador e salvador.

O mandato de "dominar a terra" que o livro do Gênesis (Gen 1,28)  coloca na boca do Deus Criador dirigindo-se ao homem recém moldado do barro e animado com o hálito da vida divina passou por muitas interpretações ao longo da tradição cristã.   Uma delas - e talvez a que mais se impôs em meios não cristãos -  tendia a interpretar a consigna divina no sentido de domínio arrogante do homem sobre a natureza, em nome do Criador. Essa tendência continua a apresentar problemas quando se trata de confrontar, ainda hoje, a problemática ecológica com o Cristianismo.  E a acusação e a desconfiança que permanecem em relação à interpretação do mandato genesíaco, no sentido de uma primazia absoluta e sem limites do homem sobre a natureza, carregam consigo sérias consequências: a suspeita de uma concepção de ser humano equivocadamente individualista, aliada a um determinismo econômico e tecnológico onipotentes; a visão do homem separado da natureza, vendo nesta uma inimiga a ser conquistada e destruída impunemente em nome de um equivocado progresso; a luta do homem pela vida transformada em ameaçador instinto de morte que pesa sobre todas as outras formas de vida.

Teologicamente, as consequências não são menos graves.  Optar por tal tendência e assumir essa interpretação é introduzir uma cisão irreparável na própria ideia de criação, separando o homem do cosmos.  É banir da vida cristã, de sua teologia e espiritualidade, a noção tão presente para os antigos de ver o cosmos como uma epifania, ou seja, como a manifestação de um mistério, que pede reverência e respeito para quem dele se aproxima.

A encíclica insistirá em que o fato de o  ser humano não ser o dono do universo «não significa igualar todos os seres vivos e tirar do ser humano seu valor peculiar» que o caracteriza; «também não requer uma divinização da terra, que nos privaria da nossa vocação de colaborar com ela e proteger a sua fragilidade»  (90).  Nessa perspectiva, « todo o encarniçamento contra qualquer criatura é contrário à dignidade humana»  (92),  mas «não pode ser autêntico um sentimento de união íntima com os outros seres da natureza, se ao mesmo tempo não houver no coração ternura, compaixão e preocupação pelos seres humanos»  (91).  Necessita-se da consciência de uma comunhão universal: «criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal, […]que nos impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde» (89). 

Embora boa e digna de reverência, lugar e morada da vida, a criação não é, no entanto, considerada pelo Cristianismo uma grandeza harmônica e em si mesma reconciliada.  É, sim, grandeza dividida, conflitiva, sofrida, porque atravessada pelo mal e por ele "submetida".  Todas as criaturas participam  dessa condição e juntas gemem e esperam pela libertação (cf.Rom 8, 19-22).   O Cristianismo, por sua vez, proclama que só a passagem pelo crivo messiânico da nova criação, inaugurada com a encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo permite dizer, afinal, que o mundo é graça.

A Laudato Si reconhece essa dimensão agônica em que vive a criação e aponta para nossa responsabilidade em relação à terra e aos seres criados.     

* professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “O  mistério e o mundo –  Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora  Rocco.