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A herança de García Márquez

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No Antiquários, poucas semanas antes do falecimento de Gabriel García Márquez, ao regozijar-se com um cabrito à moda portuguesa em companhia do escritor Deonísio da Silva, conversamos sobre a literatura contemporânea, mais especificamente a respeito da prosa de ficção que se produz atualmente em língua portuguesa, quando chegamos à conclusão de que, no momento, os dois ficcionistas brasileiros que poderiam se aventurar ao Prêmio Nobel seriam Rubem Fonseca e João Ubaldo Ribeiro. Ainda que discordássemos sobre qual seria a obra-prima do embaixador da ilha de Itaparica, já que eu mencionara Viva o povo brasileiro, enquanto Deonísio apontara para a importância de Sargento Getúlio, o diálogo nos acalentou a discorrer sobre as perspectivas de um artífice nacional diante da consagração de um prêmio inédito para as Letras pátrias.

Disse-lhe que, no idioma de Machado de Assis, um concorrente de peso seria o angolano Pepetela, que escreveu ao menos três livros capitais para a literatura da literatura lusófana: Mayombe, Geração da utopia e, a meu ver, sobretudo, a obra A sul. O sombreiro, romance histórico que narra com singular maestria e engenho a fundação da cidade de Benguela. Lembrei ao autor de Avante soldados, para trás, que, em Lisboa, a crítica especializada e leitores apostam as suas fichas literárias em dois escritores lusitanos: o retornado Valter Hugo Mãe, hábil inventor do extraordinário o remorso de baltazar serapião, conquanto a intelectual Helena Buescu predissera-me em Ipanema, no Vinicius, que o responsável pelo novo parto da Última Flor do Lácio, consoante José Saramago, não obteria o seu lugar na cobiçada posteridade; e o profético multi-instrumentista Gonçalo M. Tavares, que, em seu Uma viagem à Índia, reescreveu a Bíblia do idioma português, Os Lusíadas, de Luís de Camões. Quanto aos candidatos tupiniquins, eu confesso que não vislumbro grandes oportunidades de agraciamento da Academia sueca, de vez que, além de que são autores pouco conhecidos na ambiência europeia, é fato que os respectivos espólios literários por merecimento não abarcariam um vulto da magnitude de tal premiação universal – o Nobel de Literatura brasileiro que, com um Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, se aliaria à Copa do Mundo para extinção do genético complexo de vira-latas diagnosticado por Nelson Rodrigues. 

Se analisarmos as duas obras literárias de maior fôlego estético dos mencionados autores, deparamo-nos com a irregularidade épica de Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo, que se inicia, magistralmente, com a narração das experiências antropófagas do caboclo Capiroba, apreciador da carne holandesa por ser mais adocicada, e se encerra um tanto quanto arrastada a partir da saga da negra Maria da Fé. Quiçá, problema análogo de desgaste narrativo identifica-se no percurso de O tempo e o vento, de Érico Veríssimo; e até mesmo na arrebatadora afluência cronológica Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. O livro capital de João Ubaldo poder-se-ia equiparar ao intento de Iracema, de José de Alencar; e de Macunaíma, de Mário de Andrade; porém, as agruras do “herói sem nenhum caráter” se aproximam do retrato de uma brasilidade mais vigente e original, apesar de certa fragilidade que se observa por intermédio da perspectiva modernista: o forjar da linguagem erudita em prol de uma oralidade artificiosa, que, em tese, se aproximaria do “falar brasileiro”; a recorrência de inserção dos provérbios e ditos populares; as incursões mais que inverossímeis da fabulosa travessia do herói multiétnico etc. 

Quanto a Rubem Fonseca, que assina o revolucionário conto Lúcia MacCartney, um dos três melhores registros do gênero em português do século 20, pelo conjunto da obra, decerto obteria mais chances do que João Ubaldo Ribeiro de, ao menos, se candidatar ao Nobel, porque, além de A grande arte, escrevera Bufo & Spallanzani e Agosto, obras medianas que, sem dúvida, superariam pela força narrativa e estética, o já citado Sargento Getúlio, Vila Real e os romances mais recentes

Diário do farol e O albatroz azul. Todavia, é preciso afirmar que nenhuma obra de Rubem Fonseca ultrapassa os parâmetros de criação ficcional de Viva o povo brasileiro, de João Ubeldo Ribeiro, o que impele o leitor à seguinte indagação: quem seria o mais legítimo herdeiro de Gabriel García Márquez apto a ser laureado pelo Nobel de Literatura?    

*Wander Lourenço de Oliveira, doutor em letras pela UFF e pós-doutorando da Universidade de Lisboa, é professor universitário e autor de diversos livros, entre os quais, ‘O enigma Diadorim’ (Nitpress) e ‘Antologia teatral’ (Ed. Macabéa). -  [email protected]