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Trânsito: uma questão de saúde pública 

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 No último ano atingimos mais um recorde histórico no Brasil. Os acidentes de trânsito em estradas, ruas e avenidas deixaram cerca de 40 mil mortos em todo país, segundo dados da Polícia Rodoviária Federal. Trata-se do maior número de mortes registrado pelo Ministério da Saúde nos últimos quinze anos por causas não naturais.

A atual situação caótica do trânsito no Brasil há muito deixou de ser apenas uma questão organizacional do Ministério dos Transportes e um problema doméstico dos estados; tornou-se um problema de saúde pública nacional. Isso porque as internações hospitalares das vítimas do trânsito também cresceram cerca de 15 %, beirando os 146 mil por ano. O número de óbitos aumentou em mais de 11 mil nos últimos dez anos, e o de cirurgias quase que dobrou; em contrapartida, o número de leitos hospitalares e de UTIs não acompanhou esse crescimento nem de longe, resultando na falta de vagas e recursos para atender nossas próprias vítimas.

A cada ano que passa, o trânsito no Brasil produz um exército de mais de 400 mil feridos, grande parte com sequelas permanentes, que demandarão cuidados e recursos a longo prazo, como as centenas de sequelados que apresentam acometimento sobre a coluna ou medula espinhal, repercutindo em déficits motores irreversíveis. Quando as tragédias no trânsito não matam, certamente aleijam. O fato é que estamos produzindo uma mortalidade sem precedentes em sociedades destruídas por guerras ou calamidades, mas com um diferencial:  conflitos e intempéries um dia terminam, diferentemente das mortes nas estradas, que crescem a cada feriado prolongado.

Imprudência, ingerência e falta de educação compõem a tríade da gênese desse caos nacional. A marca histórica de desastres e mortes nas estradas de nosso país se deve à política inoperante do Estado na reformulação das vias e das sinalizações, na punição severa dos responsáveis por acidentes e, sobretudo, à irresponsabilidade do cidadão ao volante. O relaxamento da Lei Seca, atribuição a ser aplicada pelos estados e municípios, é um dos principais subsídios para a escala de mortes, já que a embriaguez foi considerada a principal causa de acidentes no último censo rodoviário.

Outras causas para esse crescimento foram a regulamentação da profissão de mototaxista em 2009 e o aumento ao incentivo à produção de carros e motos, em detrimento do transporte coletivo, comprovadamente mais seguro, sem contar, é claro, a pouca funcionalidade do dinheiro arrecadado com as multas, que deveriam ser revertidas para a prevenção dos próprios acidentes.

Estamos crescendo num ritmo assombroso de lesões corporais, mutilações e sequelas físicas para aqueles que circulam pelas estradas do país, o que tem contribuído para o aumento dos gastos com a previdência que passa a manter a maioria dessas vítimas, inaptas para o trabalho. Há uma verdadeira epidemia de lesões e mortes no trânsito. E grande parte do sistema hospitalar do Brasil, sobretudo no interior, não possui estrutura de resgate, atendimento e reabilitação pós-trauma para essas vítimas.

Por isso, é preciso mais rigor no controle na formação de novos condutores e na lei de fiscalização e punição dos acidentes de trânsito, tornando os acidentes com morte por embriaguez um crime inafiançável. É preciso também mais transparência e aplicabilidade dos recursos financeiros, que devem ser um estímulo para que estados e municípios controlem suas rodovias e invistam numa assistência pré-hospitalar mais ágil e qualificada. E claro, precisamos de educação e humanização no trânsito —  questões essenciais para se atingir qualquer progresso e reduzir nosso ônus real.

* Vanderson Carvalho Neri, médico neurologista, trabalha no Hospital Universitário Gaffrée-Guinle, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.