ASSINE
search button

Rubem Fonseca: a axila do sovaco

Compartilhar

        Acabam de sair dois novos livros de Rubem Fonseca: o pequeno romance José (167 páginas) e o livro de contosAxilas e outras histórias indecorosas (209 páginas).

        O sofisticado e ardiloso Rubem Fonseca leva peças de Shakespeare a seus leitores, sejam contos, sejam romances. Aos refinados serve as referências clássicas da literatura para que não o tomem por néscio quando desce ao grande público, lançando redes e arpões que pegam ou fisgam do miúdo ao mais graúdo dos peixes.

        Assim, logo na abertura de José, o narrador recorre a Alyosha, um personagem solar de Os irmãos Karamázov que a ninguém deixa indiferente para revelar sua noção de memória, uma vez que José, ao contrário do que alguns comentaristas vêm apontando, não é uma autobiografia disfarçada, mas o pedaço suculento de um memorial exuberante, entretanto interrompido antes dos trinta anos. Aguardemos os próximos capítulos, como nas telenovelas. O conceito de memória como recurso de educação – esta visão é de Alyosha e do narrador – vai atravessar todas as páginas. “E se apenas uma dessas memórias permanece em nosso coração, ela talvez venha a ser, um dia, o instrumento de nossa salvação”. Isto é, estamos perdidos em muitos sentidos, e a noção de labirinto se insinua em muitos parágrafos.

         Contrário a Dostoiévski, Joseph Brodsky diz que “a memória trai a todos, é uma aliada do esquecimento, é uma aliada da morte”. Até agora não passamos das dez linhas da primeira página. E na seguinte, a abertura traz outros complexos contextos, ao evocar Proust: “A lembrança das coisas passadas não é necessariamente a lembrança das coisas como elas foram”.

         Dada a influência do cinema, avassaladora e inconsciente em grandes porções na prosa de Rubem Fonseca, cinéfilo obsessivo, como espectador e como roteirista, tivemos até agora como que apenas o letreiro do filme, os acordes iniciais da trilha sonora, a fotografia, os indicadores sumários do cenário do que se vai narrar.

         O livro termina com outra noção de memória e de biografia, esta de Isaac Bashesis Singer: “A história verdadeira da vida de uma pessoa jamais poderá ser escrita. Fica além do poder da literatura. A história plena de qualquer vida seria ao mesmo tempo absolutamente aborrecida e absolutamente inacreditável”.

        Santos da Igreja, alguns deles indexados mais tarde como célebres filósofos, como Anselmo, Agostinho e Tomás de Aquino, vituperaram a velocidade e louvaram a lentidão da boa ordem. Fruiremos os sabores sutis de RF, agora aos 86 anos, se o lermos devagar, parando, pensando, sentindo o que nos diz com cada palavra.

         Acabo de ler essas duas obras-primas dispensando o tormento da pressa. E, como li os dois livros consultando outros (para meu mal ou meu bem, e azar de alguns talvez, não sou um leitor comum de RF, sobre ele escrevi três livros), termino este comentário fugaz com uma boutade do papa Gregório Magno, para me pôr no clima de Rubem Fonseca: o mundo é destruído pelos jovens e reconstruído pelos velhos, e, na reconstrução, convém sopitar o ardor dos novos e reacender o fogo dos velhos.

         De resto, José, Rubem Fonseca (talvez a vírgula e o itálico sejam excessivos, no contexto) e seus leitores têm o Feitiço de Alcácer Quibir. E jamais serão “condenados a sofrer o martírio de viver entre os demônios”.

        As aflições do jovem Rubem eram umas, as do velho Rubem são outras. Jovem, ele destruiu para construir o que hoje remodela. Não nos enganemos, porém, com suas astúcias. Leo dormiens, mas quando acorda, volta a ser rei. E o gato a seu lado caça os ratos que roeram as redes com as quais quiseram aprisionar le roi des animaux.

         Um dia José vai nos contar a sua maior dor. E a novela ratifica minha antiga tese: é o escritor mais entrevistado do mundo. Mas nos seus livros! Os jornalistas que se queixam de que ele não dá entrevistas dizem isso porque não o leem, ou, se o fazem, não o leem direito, isto é, sem velocidade, dispensando o tormento da pressa nas redações e a obsessão por “dar primeiro”, como se fruísse melhor quem o fizesse antes de todos, com sofreguidão, na mesa, na cama e em outros lugares. Para as notícias, a pressa é tudo. Para a literatura, não!

Deonísio da Silva, escritor e doutor em letras pela USP, é pró-reitor de Cultura e Extensão da Universidade Estácio de Sá e diretor de Relacionamento.  Seus livros são publicados no Brasil pela Editora Leya e Novo Século