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Candelária: 25 anos depois, chacinas e população em situação de rua continuam triste realidade

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Amanhã, dia 23 de julho, se completam 25 anos da Chacina da Candelária, em que policiais militares de folga mataram oito crianças, jovens e adolescentes que dormiam nas proximidades da Igreja da Candelária. Hoje, porém, é dia de constatar, com tristeza, que atos assim continuam se repetindo. O Estatuto da Criança e Adolescente (ECA)  já tinha dois anos e meio de existência quando aquele massacre no Centro do Rio se deu em frente ao templo católico mais imponente da cidade. Àquela altura, o marco legal foi desrespeitado por diferentes motivos. As mortes em si praticadas por agentes do estado deixaram à sombra outro aspecto fundamental a afrontar o ECA. Mais de 70 pessoas viviam em situação de rua em torno da Candelária, sem que nada fosse feito pelo poder público para transformar aquela realidade, tão presente hoje em dia.   

A diretora executiva da Anistia Internacional, Jurema Werneck, lembra que na vigília que marcou o início de uma série de eventos programados para recordar a data, uma das mães de vítimas da violência comentava que, no último dia 17, o menino Ryan do Nascimento, de 16 anos, foi morto, sem motivo aparente, quando estava em cima de um telhado de uma unidade de saúde em Magalhães Bastos. Os casos são muitos, como o de Marcus Vinícius da Silva, que levou um  tiro quando ia à escola na Favela da Maré, no mês passado.

Jurema Werneck diz que a infância e a juventude também são aviltadas no Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase). “Há inúmeras denúncias em relação a maus tratos no sistema socioeducativo no Rio de Janeiro”, diz ela. E há mortes também. Desde 2007, segundo estudos da Defensoria Pública, há, em média, pelo menos uma morte por ano no sistema Degase. Uma das mais chocantes aconteceu em 2007, quando Andreu da Silva, de 17 anos, foi espancado por policiais. A mãe do rapaz, Deize Silva de Carvalho, é uma ativista incansável à procura de justiça.

Para Jurema Werneck, a sociedade precisa se mobilizar mais para que violações ao ECA não sejam naturalizadas: “Tem de tudo na nossa sociedade. Há os que se importam com as violações, há os que se mobilizam contra elas e há os que, infelizmente, consideram que esse seja o caminho, ou seja, não se indignam com as violações contra crianças, jovens e adolescentes. É preciso que aqueles que se importam passem a se mobilizar contra esse tipo de barbárie”. 

Naquele ano de 1993, o jornalista Telmo Martinho fez uma provocação de gosto duvidoso sobre a Chacina da Candelária, mas talvez tenha flagrado o pensamento de parte da sociedade carioca. Indagou à época em sua coluna no jornal “O Globo”: “chacina ou faxina?”. Em torno da Candelária, um grupo de pelo menos 70 jovens, adolescentes e crianças circulava pela Cinelândia e pelos prédios de escritórios e de grandes empresas. Execuções de adolescentes na Baixada Fluminense e em outras áreas periféricas já eram uma realidade, mas, nem de longe, tiveram a repercussão daquelas mortes no coração do Centro da Cidade. 

Patrícia Oliveira, irmã de um sobrevivente da chacina (Wagner dos Santos), diz que a mobilização de mães que perderam seus filhos em ações policiais criminosas vem aumentando. Trata-se de um movimento fundamental, mas Patrícia vê com tristeza um aspecto dessa mobilização, entre mães e familiares das vítimas da Chacina da Candelária: desde 2004, ela é a única parente a frequentar os encontros. “Em 2004, uma das mães de um menino morto, que não vou identificar, me disse que não iria mais a qualquer ato relacionado àquele massacre. Ela me disse que a filha dela estava crescendo e passou a temer pela vida dela, sobretudo quando algumas reportagens citaram a comunidade onde ela morava”. 

Patrícia diz, contudo, que há mães e parentes das vítimas engajados na luta contra o silêncio de um segmento da sociedade. Segundo ela, pelo menos cem mães estão sempre em contato umas com as outras, seja por grupos de WhatsApp, seja presencialmente. “Em maio deste ano, teve, em Salvador, na Bahia, o Terceiro Encontro Nacional das Vítimas de Violência. Quarenta e sete mães que perderam seus filhos vítimas de operações policiais estiveram presentes naquele evento”, lembrou a irmã de Wagner, acrescentando que o grupo do Rio se comunica com organizações não só da Bahia como de São Paulo, do Espírito Santo, de Minas Gerais, de Goiás e do Pará: “No Rio, temos movimentos importantes no Morro do Borel e em Manguinhos, entre outros”.  

Ela contou que o irmão está morando na Europa. Wagner levou quatro tiros de policiais que o levaram de carro no dia da chacina. Com mais dois jovens, foi abandonado no entorno do Museu de Arte Moderna. Único a sobreviver dos três, foi essencial para que quatro policiais militares fossem presos. Um ano depois, foi sequestrado por policiais, levou mais quatro tiros e sobreviveu. Wagner é cego de um olho e surdo de um ouvido. Sua irmã disse que recebeu ajuda do Ministério da Justiça para sair do país. “Ele se adaptou bem no exterior. O trauma, porém, persiste”, disse ela. Wagner foi um dos poucos a terem alguma reparação do Estado brasileiro.  O esquecimento é algo bem mais preponderante do que qualquer compensação. Na cruz em frente à Candelária que continha o nome dos mortos, não se vê qualquer vestígio da inscrição em memória dos oito jovens chacinados. Se foram apagados ou não, isso simboliza muito a omissão sobre uma prática de violência letal que persegue a infância, a adolescência e a juventude, sobretudo a negra e periférica.

Yvonne: testemunha afetiva da história 

A artista plástica e filóloga Yvonne Bezerra de Mello, em entrevista ao JORNAL DO BRASIL, chama a sociedade à responsabilidade: “As pessoas querem ignorar os milhares de assassinatos no Brasil que atingem um perfil específico: o jovem negro e de periferia”.  Também cita o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): “Precisamos implementá-lo urgentemente. Há uma negligência com toda uma juventude. Não há política pública para adolescentes, há remendos”. Yvonne, contudo, pôs seu enorme engajamento à parte para lembrar com sensibilidade a Chacina da Candelária. 

Ela já trabalhava com aquele grupo de 72 crianças, adolescentes e jovens que circulavam a igreja: “A minha presença era diária na Candelária. Eu levava pães, mas também lápis de cor, papel...Muitos sabiam escrever”. 

Yvonne vai do passado ao presente com agilidade: “Ontem (na última quinta-feira), saindo da Candelária, indo pegar o carro, vi várias crianças na rua, meninas de 14 anos com bebê no colo”. De repente, ela se concentra na história em que foi uma testemunha fundamental.  “Um dos meninos, bem novinho, me ligou por volta de 20 para meia-noite me dizendo: ‘Estão atirando na gente aqui’”. Yvonne conta que pegou seu carro e, tarde da noite, dirigiu-se à Candelária. Diz que naquele dia houve um pequeno conflito entre policiais e o grupo com quem mantinha constante contato. Alguns meninos, recorda, chegaram a jogar pedras em carros da corporação militar: “Mas quando houve a chacina, não pensei em retaliação. Sempre houve ameaças de morte”. 

Naquele dia, Yvonne olhou os meninos mortos e tomou uma decisão: convocou todos a passar a noite juntos com ela, na calçada onde acontecera os assassinatos. Ela se lembra de Thiago, que subiu no topo de uma banca de jornal para se proteger dos tiros. “Morreu tempos depois de bala perdida na Maré”, diz ela.

 A artista plástica afirma que todos daquele grupo vieram de áreas consideradas conflagradas: “Eram ou do Complexo do Lins ou de uma comunidade de Madureira”. 

Após a chacina, Yvonne levou todos os sobreviventes para um abrigo: “No dia do enterro, fui com eles para o Cemitério do Caju. Todos disseram que eu deveria ir ao velório. Fomos em um mesmo ônibus, e eu fiquei à espera de todos naquele coletivo. Foi uma atitude de proteção. ‘Não quero a senhora no Caju’, me disse um deles. Depois do enterro, fui passear com eles pela cidade no ônibus”. 

Yvonne preocupou-se o tempo todo com o destino daqueles jovens. Conseguiu levar a maioria para uma moradia segura em uma favela da Zona Norte. Ao jornal “Folha de S.Paulo”, disse na sexta-feira que, dos 72 jovens, 34 foram vítimas de morte violenta. À revista “Marie Claire”, por sua vez, relatou que Sandro do Nascimento, um dos sobreviventes da Chacina da Candelária, morto a tiros ao assaltar o ônibus 174 em 2000, em meio a uma altíssima tensão, chegou a dizer: “Chama a tia Yvonne”. 

Yvonne teve de lidar com a pecha de que protege bandidos. Tal rótulo ganhou maior dimensão quando ela foi ao encontro do jovem negro que foi acorrentado a um poste em 2014, por um grupo de justiceiros, no bairro do Flamengo, na Zona Sul. “Ali vi uma cidade contra mim”, diz ela. Direitos humanos violados, Estatuto da Criança e do Adolescente constantemente deixado de lado e, enquanto o Estado não cuida dessa juventude, há quem ainda critique quem o faça. 

A tragédia persiste

JOSÉ CLÁUDIO SOUZA ALVES* Especial para o JB

Uma década após o início da redemocratização, 1993 era a certeza de que o fosso social, escancarado pelo regime militar, não seria mais transponível. Após uma década perdida, outra se iniciava. Nenhuma mobilidade ascendente ou política social inclusiva. Uma década de tráfico de drogas e facções. Uma década de suborno e tráfico de armas. Polícia ou bandido, o tráfico como chance para os pobres da cidade. Após quatro anos de Moreira Franco (PMDB) à frente do governo do estado (19871990), com os maiores índices de homicídios, o brizolismo volta. Direita, mídia e classe média desesperada identificam Brizola como grande culpado. Montam o discurso da necessidade de mais repressão e guerra às drogas. Um aparato policial corrompido, mais equipado e com licença para matar, respaldado pela vontade midiática e popular vai às ruas. Eis o pano de fundo da Chacina da Candelária e, um mês depois, da Chacina de Vigário Geral. No primeiro caso, “limpeza” social da área central feita por policiais. No segundo, vingança contra a morte de policiais numa favela da periferia, feita por um grupo de extermínio composto por policiais militares. Oito assassinados na primeira, 21 na segunda. Entre a comoção internacional, apoio às execuções e tiro de misericórdia no brizolismo, uma certeza: a execução sumária se consolidara como a resposta do Estado. Em 1994, o recém-empossado governador Marcello Alencar (PSDB) deflagraria a operação Rio I. Tanques nas favelas controlavam a violência. Alguma semelhança com nossos dias? Após 25 anos, tráfico, guerra às drogas, grupos de extermínio e milícia fazem das chacinas de 1993 o jardim de infância do que vivemos. Uma intervenção militar mais uma vez é aclamada. Mídia e população aplaudem. O fosso aumenta. A execução sumária é transformada em política de segurança pública. Governador (PMDB), milicianos, policiais e matadores fazem suas trajetórias políticas e econômicas pisando corpos negros, pobres, favelados e de periferias. E nunca se aplaudiu tanto os algozes.

*Sociólogo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)