ASSINE
search button

Lado mais covarde: dados mostram número crescente de crianças mortas em ações da polícia

Compartilhar

A defensora pública Eufrásia Souza das Virgens vem acompanhando pela imprensa os casos de crianças mortas em ações policiais. Teve a trágica impressão de que tais ocorrências estavam aumentando.  Para avaliar melhor o tamanho da tragédia, solicitou ao Instituto de Segurança Pública — uma autarquia da Secretaria estadual de Segurança Pública que divulga estatísticas do setor — que a informasse sobre os dados dos últimos anos. Infelizmente, como deduzira, os números são crescentes: 70 (2014); 73 (2015); 108 (2016); e 110 (2017). “Em 2017, dois casos foram extremamente dramáticos: o de Maria Eduarda, morta no pátio da escola, em Acari; e o de Vanessa Vitória, 10 anos,  atingida quando estava em casa, no Complexo do Lins”, cita a defensora, confirmando que ambos foram decorrências de ações policiais desastradas. 

Para Eufrásia Souza, no aniversário de 28 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), celebrado na última sexta-feira, vale enfatizar que, no Rio de Janeiro, o ECA tem sido desrespeitado recorrentemente. A defensora dá um exemplo dos mais aterradores: o de Patrick Ferreira, morto aos 11 anos, em 2015. Para contar a triste história de Patrick, a defensora, primeiramente, expõe o artigo 4º do ECA. “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”.

No dia 11 de janeiro de 2015, o artigo 4º não valeu para o menino, alvejado por tiros na favela Camarista Méier, na Zona Norte do Rio. “O ECA foi violado no caso de Patrick em vários níveis. Ele estudava numa escola municipal, e não a vinha frequentando. Nesse caso, a escola é obrigada a comunicar ao Conselho Tutelar a evasão do aluno. E isso, absurdamente, não aconteceu. A mídia publicou à época que ele tinha ligação com o tráfico. Mesmo se isso fosse verdade, noticiado dessa forma, parece que há uma naturalização da morte de uma criança, já que a adolescência é a partir de 12 anos”, disse ela, ressaltando os 11 anos de idade da criança. 

A defensora toca nessa caso intencionalmente. Ela pediu as estatísticas de morte de crianças e adolescentes em meio a conflitos com a polícia por dois motivos centrais. O primeiro é criar políticas públicas para que essas mortes cessem; a segunda, e não menos importante, é a apuração dos casos: “A morte de Patrick até hoje não foi desvendada pela polícia, a despeito de o Ministério Público ter denunciado os policiais”. 

Coordenadora do Eixo de Segurança Pública da Redes Maré, Lidiani Malanquini diz que a Favela da Maré já teve dois casos de adolescentes mortos em operações policiais naquele território.  O adolescente Marcus Vinicius da Silva, de 14 anos, foi atingido pelas costas, num tiro que atravessou sua barriga, no dia 20 do mês passado, quando voltava para casa, após tentar chegar ao Ciep Operário Vicente Mariano, em meio a uma operação da Polícia Civil, em conjunto com o Exército. Em fevereiro deste ano, Jeremias Morais, de 13 anos,  levou um tiro quando jogava bola numa quadra da localidade de Nova Holanda. 

Antropóloga, cientista política e especialista em segurança pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), Jacqueline Muniz diz que a morte de crianças e de adolescentes segue a perversa lógica de que crianças e adolescentes da favela e da periferia não têm direito a uma vida normal. “Crianças ou adolescentes numa favela podem estar com uma bola, bíblia ou um uniforme de escola. Não importa, são criminosos. Essa leitura medieval dos cenários de locais mais pobres leva a uma política de segurança na qual os preceitos de segurança pública, como o da redução de risco, incerteza e perigo, são deixados de lado absurdamente”, diz a professora da UFF, que, desde o início da Intervenção Militar, em 16 de fevereiro passado, se posicionou contra os métodos, entre os quais, o de se revistar crianças e adolescentes moradores de favelas.