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Marcelo Crivella e o risco calculado

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Professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), a antropóloga Christina Vital acompanhou com grande curiosidade a performance do prefeito Marcelo Crivella no episódio, informado pelo jornal “O Globo”, no Palácio da Cidade, em que se reuniu, na tarde de quarta-feira, com pastores e líderes de igreja, oferecendo o equacionamento de problemas com IPTU em templos ou facilidades para fiéis à procura de cirurgias de catarata e varizes. Autora dos livros “Oração de traficante, uma etnografia” (Editora Garamond) e “Religião e política: medos sociais, extremismo religioso e eleições 2014” (Fundação Heinrich Böl e ISER), ela estuda a interface entre religião e periferias na Região Metropolitana do Rio de Janeiro e, desde 2011, vem acompanhando o cruzamento entre religião e política institucional no Brasil.  Christina Vital diz que Crivella deve ter lidado com a imensa repercussão na mídia fazendo algo surpreendente: cálculo político. Nesta entrevista, ela explica por quê.

Quais foram, na visão da senhora, as consequências desse evento no Palácio da Cidade para a carreira política do prefeito?

 Ele está tendo uma visibilidade enorme junto ao público evangélico do país como um defensor e protetor da população evangélica. Ele aparece como aquele que está cumprindo uma promessa. Vale lembrar que o slogan da campanha dizia que ele iria cuidar das pessoas. Evidentemente, há um desgaste com a população que já era refratária ao Crivella e ao avanço da Igreja Universal na política. Esse fato emerge como uma constatação do comprometimento do prefeito com a sua igreja e com um público religioso em especial. Mas não podemos negar que, com este episódio, Crivella fortalece seu capital político com evangélicos na cidade.

E quanto a outros segmentos da população carioca? 

Crivella se lançou candidato nas eleições de 2016 adotando uma estratégia de estabelecer alianças com diferentes segmentos da sociedade carioca. Como o católico, o empresariado e diferentes sindicatos. Para se ter uma ideia, o primeiro agradecimento que Crivella fez em seu discurso de posse foi ao sindicato dos mototaxistas. Na campanha, ocultou o elemento religioso. Nela, tinha um discurso sereno, que buscava demonstrar grande segurança e autoridade. Sua oratória, então, em nada se assemelhava à de pastores neopentecostais que normalmente se apresentam de forma enfática e performática. Em seus discursos, portanto, parecia mais um bispo católico do que um pastor evangélico. Mas, ao obter a vitória nas eleições, ele muda de estratégia e começa a utilizar uma gramática evangélica em seus diferentes pronunciamentos públicos, falando como o guardião de uma moral cristianizada. Com isso, se fortaleceu com evangélicos e também com uma população que se apresenta de modo conservador em termos de costumes. A despeito da competição que existe entre as denominações, não resta dúvida que evangélicos de igrejas que não as do prefeito se sentem representados por suas iniciativas e pronunciamentos.

Isso lembraria o episódio da exposição Queer Museu no ano passado, quando Crivella disse que a mostra só aconteceria “no fundo do mar”, numa alusão ao seu veto de fazê-la no Museu de Arte do Rio (MAR)?

Para um público ilustrado, de uma classe média da Zona Sul, esses pronunciamentos  religiosos e conservadores de Crivella soam como repugnantes. Mas, para um amplo contingente da população carioca, se trata de um posicionamento coerente, que fala aquilo que outros não têm coragem. Nesse episódio do museu, ele ganhou uma intensa visibilidade novamente, tentando se apresentar como guardião da moral dos citadinos.

A senhora acredita que Crivella gostou do fato de o episódio no Palácio da Cidade ter vazado para a imprensa? 

Sim. Ainda que tenha sido inesperado este vazamento, o uso político da situação é evidente.

As atitudes de Crivella diante da cultura negra da Rio também envolvem cálculo político? 

Para efeito de análise, cabe comparar as gestões de Crivella e de seu antecessor, Eduardo Paes. Paes, que foi o prefeito da cidade no contexto dos megaeventos, usava a diversidade artística e cultural presente na cidade como uma moeda para apresentar o Rio como uma capital moderna e cosmopolita. Crivella, por sua vez, age na direção contrária. Em diferentes ações, desde o início de seu mandato, vem se contrapondo a eventos, festividades, expressões culturais, artísticas e religiosas desse segmento urbano que se apresentava justamente sob a chave da diversidade. Assim, o baile charme, o Jongo da Serrinha, o Instituto dos Preto Novos, o Cais do Valongo, o samba, enfim, diversos patrimônios culturais e artísticos ligados à cultura negra e popular, perdem o financiamento ou o incentivo da prefeitura. É um cálculo arriscado, sem dúvida. Mas na vida política tal como está, o que importa é agradar à maioria ou a segmentos estrategicamente mais poderosos.

Como assim segmentos estrategicamente poderosos? 

Numa democracia representativa, na qual os políticos se elegem pelo voto de uma maioria, há sempre um interesse em cooptar a simpatia de um número maior da população. No entanto, quando isso não é imediatamente possível, a estratégia é agradar a grupos que, embora menos numerosos, são poderosos na difusão de uma imagem pública positiva àquele político. Esses grupos poderosos em termos econômicos produzem visibilidade, financiamentos e favorecimentos vários, sem falar no apoio político estritamente.

Poderia dar exemplos desses grupos? 

No caso do prefeito Crivella, o grupo com o qual ele vem, evidentemente, buscando maior comunicação é o evangélico. Outros segmentos com os quais observamos uma aliança, tanto na campanha quanto durante o mandato, é o empresariado do turismo e do setor imobiliário, conforme estamos acompanhando em pesquisa realizada no Departamento de Sociologia da UFF. O segmento gospel foi defendido por Crivella desde seu mandato como senador. Os atores envolvidos com este mercado, que vem crescendo de modo acentuado há, pelo menos, dez anos, buscam afirmar o gospel como uma forma de expressão cultural brasileira. As ações de Crivella à frente da prefeitura, de modo direto ou indireto, tentam contribuir nessa direção. O apagamento da cultura negra e identificada como popular e de rua está relacionada a esta agenda que mistura religião, cultura e economia.

Como Crivella deve se posicionar nas eleições deste ano? 

Ele vem atuando para o fortalecimento de seu partido, o PRB, haja vista que nessa reunião secreta estava a seu lado o pré-candidato a deputado federal pelo PRB Rubens Teixeira, ex-secretário de Transporte de sua gestão. No entanto, o sucesso de seu apoio ao candidato para governador Índio da Costa vai ser muito desafiado. Em primeiro lugar, porque há outros candidatos mais expressivos e com larga trajetória na administração pública do Rio de Janeiro. Paralelamente a isso, são vários os líderes evangélicos de grande peso que têm se articulado em torno de outros nomes. Esses líderes têm visibilidade e reúnem uma grande população evangélica em suas igrejas. Por exemplo, duas importantes lideranças da Assembleia de Deus no Rio, o pastor Silas Malafaia e o bispo Manuel Ferreira, declararam seu apoio a Eduardo Paes. Outro candidato a disputar o público evangélico será Anthony Garotinho, ex-governador do Rio. Vamos acompanhar quem vai ganhar a queda de braço em torno do eleitorado evangélico e qual será o sucesso relativo de Crivella e da Universal neste jogo. O desejo comum, é claro, seria que a disputa por um quinhão no poder fosse solapada por um político que visasse ao bem comum. É muito importante participar ativamente do pleito. A política é um importante meio público de interferência na vida coletiva.