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‘É mais barato prevenir’

Professora busca incentivo para manter projeto que afastou crianças do tráfico e da violência

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Mais de seis mil crianças moradoras da favela Vila Aliança, em Bangu, na Zona Oeste, já passaram pelas aulas do Semente do Amanhã. O projeto, fundado há 30 anos por Selmirami Nascimento, de 55 anos, conhecida na região como Tia Selminha, sobrevive apenas de doações e incentivos de editais de empresas. Para proteger seus 153 alunos das balas perdidas provocadas por tiroteios diários, Selminha iniciou uma campanha para a construção de novo muro para a ONG. Sem alcançar o valor necessário para construir a muralha, ela tenta angariar recursos para reformar um novo espaço doado à Semente do Amanhã.

Você mantém uma ONG há 30 anos na Vila Aliança, em Bangu, uma área muito conflagrada. Como começou o trabalho?

Desde pequena sempre me importei muito em ajudar os outros. Isso está ligado à minha origem. Minha mãe engravidou aos 14 anos. Foi expulsa de casa e, quando nasci, ela ainda morava na rua, em Santíssimo. Passamos um bom tempo fugindo do juizado de menores, porque naquela época não era comum crianças ficarem na rua, como acontece hoje. Depois, fomos para São Fidélis (Norte Fluminense), onde minha mãe conseguiu moradia. Em troca, cuidava de um galinheiro. Quando ela completou 19 anos, conseguiu dinheiro suficiente para voltarmos ao Rio e nos mudamos para um quarto alugado, em Realengo. Para comprar comida, vendíamos ferro-velho. Na escola, sofri muito bullying, porque eu era pobre demais, não tinha shampoo nem sabonete. Mas tinha uma professora maravilhosa, a dona Kátia. Ela me protegia das outras crianças. Eu sempre pensava que quando crescesse queria ser como ela. Quando eu e minha mãe nos mudamos para a Vila Aliança, eu estava com 12 anos e víamos muitas crianças da minha idade trabalhando no tráfico. Aquelas imagens de crianças com armas não saíam da minha cabeça. Eu precisava fazer algo para mostrar a elas uma outra realidade. O meu primeiro projeto foi de um sopão diário para 30 crianças, na hora da janta. Depois eu dava um sermão falando sobre cidadania. O projeto Semente do Amanhã tomou corpo quando passei em concurso para a Embratel e consegui ajuda de amigos da empresa. Com uma doação de computadores, criamos um curso de informática. Aos poucos, fui conseguindo novos donativos e a coisa foi crescendo. 

Quantas crianças são atendidas?

Hoje, atendemos 153 crianças, com atividades como balé clássico, contação de história, dança folclórica, judô, reforço escolar, coral, teatro e aulas de cidadania, sempre no contraturno escolar. Nos mantemos com inscrições em editais abertos por empresas. Não é fácil, porque nossa despesa é de R$ 12 mil por mês, com o pagamento da folha de pessoal, além de R$ 2 mil com lanches. São 12 funcionários e dois voluntários. Fazemos muitos passeios no teatro, museu, passeios culturais, sempre. Mostramos para eles que há vida além da realidade da Vila Aliança. Mostramos que fazem parte do círculo e não de um quadrado limitado. Temos muitos que já se capacitaram e estão fazendo parte do mercado de trabalho. Estão fazendo faculdade, formando famílias de uma forma saudável. Nos orgulhamos em ser um oásis no meio de tanta violência. 

Como é essa rotina de manter um trabalho voltado para crianças em uma área tão conflagrada, com tantos traficantes?

Sempre digo aqui no Semente do Amanhã que uma sementinha tem tudo dentro dela para germinar em um solo fértil, mas é preciso orientação para seu crescimento. O solo propício para esse desenvolvimento é dado através do cultivo de valores. Do contrário, a semente não dá frutos. Crianças e jovens entram para o tráfico porque não têm autoestima, nem oportunidade. É muito comum vermos adolescentes de 14, 15 anos sendo facilmente recrutados. A prevenção é um caminho mais fácil e barato do que a repressão. É nisso que eu acredito para continuar mantendo o projeto. É um desafio, porque o tráfico é um dos principais meios de sobrevivência ali. Você é pobre, precisa comer e vestir, não tem emprego, o tráfico te recruta. A maioria dos meus alunos sofrem influência direta do crime. Um deles teve o pai esquartejado. O homem era informante do tráfico e cochilou. Para seu azar, o caveirão entrou. Ele acabou julgado pelo tribunal do tráfico e acabou esquartejado. Temos um cuidado especial com este aluno, que está tendo oportunidade de trilhar um caminho fora do tráfico. A maioria dos alunos tem pai preso, mãe, avó ou tios envolvidos.  É um chamariz. Não apenas pelo dinheiro, mas também pelo status. Convivemos e somos respeitados pelos traficantes, mas não aceitamos nada deles. Se num dia aceitamos algo, no dia seguinte temos que esconder uma arma, nos tornamos reféns. Esta relação a gente não quer. O nosso trabalho acabou prejudicado desde 2015, quando o chefe do tráfico se mudou para uma casa ao lado da ONG. Desde então, a coisa ficou muito complicada. O nosso muro está todo furado. Mesmo com sua prisão (em setembro de 2015) , ainda há muitos traficantes por lá. Então, iniciamos uma campanha para construir um muro mais forte para cercar toda a ONG, mas não alcançamos a meta. São muitas marcas de tiros de fuzil e pistola. 

De quanto era a meta? E quanto vocês conseguiram arrecadar?

Precisávamos de R$ 12.815 e arrecadamos R$ 7.453,00. As pessoas estão muito descrentes de que podem mudar o mundo. Se cada um fizesse um pouquinho, o mundo mudaria. Agora vamos iniciar uma nova campanha chamada “Abrace”, para reformarmos um novo espaço que conseguimos. É um local bem perto da sede da ONG, onde todas as crianças podem ir, mas fica longe dos tiros. O problema é que o lugar está sem manutenção há 11 anos e precisamos recuperá-lo para podermos usá-lo. Vamos ficar longe dos tiroteios, o que é muito bom. Mas, como vai demorar muito essa logística de arrecadação, vamos permanecer na nossa sede até o final deste ano. É complicado. Hoje mesmo foram três tiros na nossa rua. O novo espaço será cedido. Mas precisa de muitos reparos. Acredito que seja necessário a construção de um muro, reparo na parte elétrica e algumas infiltrações, troca de telhas e pintura. Isso pra tornar o espaço habitável. O orçamento para a reforma completa do local gira em torno de R$ 120 mil. Neste primeiro momento, a sede da ONG vai permanecer no mesmo local, vamos aó transferir algumas atividades para lá, como a banda marcial e o judô. As doações podem ser feitas através do nosso site www.sementedoamanha.org/doacao 

Você não mora mais na Vila Aliança, mas frequenta a favela diariamente por conta do trabalho na ONG. Não tem medo de passar por algum episódio violento por lá?

Pode acontecer com qualquer um a qualquer momento. Nossa maior insegurança é quando a polícia entra, porque não há hora nem dia certo. Se entrasse com um plano de ação, para resolver, tudo bem. Mas só entra para pegar dinheiro. As operações, como são feitas hoje, tornam os moradores da favela reféns, com muitos feridos e mortos.