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Preso como suspeito de ligação com milícia, Pablo integra projeto circense que atende 350 crianças

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A arte de equilibrar três malabares no ar não é tarefa fácil para um iniciante. Manter-se nas alturas pendurado em tecidos coloridos enroscados no corpo também não. Mas as duas peripécias são executadas com destreza pelo estudante Luiz Otávio, 17 anos, e pela monitora Michele, 24. Talvez porque venha da experiência do dia a dia a coragem e a firmeza necessárias para desempenhar os dois movimentos. A dupla  pertence a um grupo de 350 alunos da Associação Comunitária de Apoio Psicossocial (ACAPS), que forma artistas circenses há 13 anos, na Favela do Aço, em Santa Cruz, bairro entre os oito com menor Índice Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade. Foi de lá que saiu Pablo Bessa, hoje acrobata, palhaço e malabarista. O artista foi cinco vezes à Suécia nos últimos quatro anos, cumprir contratos de trabalho que variaram de três a seis meses de duração. Referência para os jovens carentes da região, Pablo foi um dos 159 presos durante uma festa num sítio em Santa Cruz, no último dia 7, encarcerados sob a suspeita de pertencer a um grupo de milicianos. No entanto, segundo moradores, a maioria — sem antecedentes criminais — estava ali para assistir a três shows de pagode, não para exaltar criminosos.   

Uma via perpendicular à Rua Cesário de Melo, uma das principais da Zona Oeste, conduz esses jovens a subir num picadeiro de esperança, na tentativa de galgar melhores condições de vida. Ali, na Rua Gomário, uma grande tenda com equipamentos circenses é o laboratório para formação de artistas de circo, que já garantiu empregabilidade a muitos. A Favela do Aço, antes dominada por traficantes e, agora, por milicianos, tornou-se conhecida por conta do alto índice de violência. Apesar do asfalto na rua principal da favela, algumas transversais ainda são de terra batida. Uma marca que denuncia a carência do lugar. 

Filha de uma família de seis filhos, Michele de Oliveira, 24 anos, descobriu o circo aos oito e já passou de aluna à monitora. Hoje, ela ajuda a sustentar a casa com o salário de professora de circo e com o cachê das apresentações nos picadeiros. Quando o assunto é tecido, dá um show. Quando o papo é contorcionismo, nem se fala. Com a “Trupe Anima Circ”, a artista participa de diversos festivais pelo país. 

“Quem conhece o circo se encanta. Foi a única alternativa pra mim. Aqui em Santa Cruz, não se tem muita oportunidade”, diz ela, que também estava na festa do sítio, quando vários conhecidos foram presos. “Pagamos ingresso, queríamos curtir os shows. Não vi ninguém armado lá. Conheço gente que foi presa, é trabalhador,  e a família está passando por dificuldades. Quem mora em área de tráfico está tendo a família expulsa, porque foi acusado de ser miliciano”, conta Michele. 

Outro que também recorreu a piruetas para driblar as dificuldades foi o malabarista e acrobata Luiz Otávio, 17 anos. Iniciou-se nas atividades circenses há seis e, agora, dá aulas na Elza Osborne, em Campo Grande. Ele também acabou detido no pagode do sítio, mas foi liberado após comprovar que, além de matriculado no 2º ano do Ensino Médio, trabalha como monitor na lona cultural. 

Diretor da Associação Comunitária de Apoio Psicossocial, Jonathan Mendes conta que, sem incentivos, o projeto vive sua fase mais difícil: “Hoje só temos uma parceria para o pagamento de salários de seis monitores. Não temos recursos nem para comprar material. Ano passado, nos apresentamos até em troca de mantimentos. Não apareceram apresentações pagas. Este ano é que a coisa tá melhorando”.

Convite a Jungmann 

Depois de o ministro da Segurança Pública Raul Jungmann afirmar que os presos sem antecedentes criminais em ação contra a milícia têm que explicar o que faziam em ‘festa de bandido’, uma moradora de Santa Cruz, identificada como Juliana da Motta Rangel, amiga de um motorista preso, escreveu uma carta ao titular da pasta: 

“Sr. Raul Jungmann, aqui  em Santa Cruz Zona Oeste do RJ, não possuímos casa de shows, restaurantes de primeira classe, hospitais de luxo, não temos hotel 5 estrelas. Aqui comemos quentinha, churrasquinho e, quando muito, vamos na pizzaria da esquina. Nosso “shopping” é menor que uma galeria. Nosso hospital não tem água, comida, remédios, muito menos médicos. Nosso hotel se resume a um “motelzinho” de beira de estrada, nossa casa de shows são pequenos clubes “falidos” que alugam esses espaços para festas, eventos e shows a preços populares, porque qualquer coisa que ultrapasse o valor de R$ 20 já fica muito difícil. Então, os shows por aqui não podem ser em níveis internacionais, também não temos cinema e teatro. Aqui a gente “racha” a cerveja até em casamento! Aqui a “Farra dos guardanapos” está mais para “Farra do papel higiênico”. Mesmo assim, somos felizes e vivemos com DIGNIDADE. Provavelmente o custo dessa sua vinda ao RJ seja o valor de um UM MÊS INTEIRO de trabalho de algum daqueles rapazes ou até mais. Então, por favor, não venha pedir maiores explicações, né? Gostaria de lhe fazer um CONVITE. VENHA PASSAR 2 DIAS EM NOSSO BAIRRO!!!!”.

‘Prisões são ilegais’, diz defensor público

Com a defesa de 40 dos 159 presos durante show de três grupos de pagode num sítio de Santa Cruz, no último dia 7, em que a organização criminosa Liga da Justiça estaria fazendo uma homenagem ao líder, Wellington da Silva Braga, o Ecko, a Defensoria Pública recorreu, ontem, ao Supremo Tribunal Federal (STF), na tentativa de conseguir habeas corpus para alguns envolvidos. Um dos engajados no caso é o defensor público João Gustavo Fernandes. Ele explica que a própria Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco), responsável por investigar crimes relativos às milícias, informou à Justiça que, dos 159 presos, só 20 eram investigados. “As prisões são arbitrárias e ilegais. Chegaram num show pago e prenderam, de forma indistinta, 159 pessoas. Também apreenderam 25 armas. Analisando isso,  é difícil você falar que os presos tinham armamento à sua disposição”, observa.

Segundo ele, as justificativas das decisões judiciais negando os habeas corpus têm endossado  o discurso da polícia, de que se tratava de uma festa fechada de milicianos, contrariando o que contam moradores locais. Outros juízes preferem não decidir sobre os pedidos enquanto não houver decisão do juiz criminal de Santa Cruz sobre o caso. 

“Um dos habeas corpus impetrados foi em favor de um preso chamado Vinícius Guedes, que tem  carteira assinada como atendente do BarraShopping. Ele não tem antecedentes criminais. Levamos o caso ao STJ (Superior Tribunal da Justiça), e nosso pedido foi indeferido. Agora, estamos no STF. Não sabemos se, quando ele sair da prisão, continuará tendo emprego. E como o Estado poderá corrigir isso?”, questiona o defensor público. Ainda de acordo com informações da Defensoria Pública do Rio, o preso Renato da Silva Moraes Júnior, 23 anos, que sofre de déficit de atenção leve, recebeu atendimento na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Bangu. 

Conforme o JORNAL DO BRASIL noticiou, a família de Renato denuncia que, desde a prisão, há 18 dias, ele está privado de tomar a medicação receitada por seu médico. O caso está sob tutela da 2ª Vara Criminal de Santa Cruz, cujo fórum tem sido alvo frequente de manifestações de familiares dos presos. Depois dos habeas corpus negados, a Defensoria aguarda nova manifestação do Ministério Público estadual sobre manter ou arquivar o processo.