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‘Práticos e inteligentes’: professor amazonense fala do indígena brasileiro

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O amazonense José Ribamar Bessa Freire, 70 anos, professor de Educação Indígena na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e de Antropologia Cultural na UniRio, abre novos horizontes sobre o que é o índio brasileiro e o que ele representa para a cultura nacional. Para ele, se o conhecimento indígena for levado a sério pela ciência moderna e incorporado aos programas de pesquisa e desenvolvimento, os índios serão valorizados pelo que são: povos engenhosos, inteligentes e práticos, que sobreviveram com sucesso por milhares de anos na Amazônia. Nesta última quinta-feira 19, ele comemorou o Dia do Índio com a conferência “Sementes de cura e ritual de proteção dos povos indígenas”, realizada na capela ecumênica da Uerj, com direito a exposição de fotografias e coral de crianças guarani.

JB - O que é ser índio no Brasil? 

José Ribamar -  Índio é um termo muito genérico. Quando se fala em europeu, há vários povos distintos, o genérico não apaga a identidade de cada um. Índio não existe, o que existe são tukanos, ianomamis,etc. Hoje, há oito etnias no Rio de Janeiro, em Paraty, Angra dos Reis, Maricá e Itapuaçu, que falam o idioma guarani. A comunidade Pataxó que vive no Rio se concentrou em Cachoeira do Iriri. Há também os índios Puri, que falavam a Língua Jê, vieram do Pará e se dispersaram entre Resende e Campos e foram considerados extintos pela Funai, porque eles não vivem mais em comunidade. Estão em processo de ressurgimento. Ser índio envolve mil facetas. Segundo o o censo de 2010 do IBGE temos hoje no Rio  mais de 17 mil índios que falam quase 30 línguas diferentes. Eles não têm com quem falar seus idiomas, verdadeiro drama.  A mesma pesquisa do IBGE apontou 987 mil índios no país. Desses, 340 mil vivem em cidades. Manaus e Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, são cidades que concentram muitos índios. 

JB - Como manter viva essa variedade tão grande de idiomas? 

José Ribamar - Eles já não vivem em comunidades e as cidades são cemitérios das línguas indígenas, porque não há políticas públicas para estas populações, vivem sob jogo de empurra com a Funai. A única cidade que esboçou uma política para esses povo foi Manaus, na gestão do prefeito Serafim Correa, há 10 anos, da qual participei. O projeto piloto durou quatro anos: de manhã as crianças indígenas frequentavam as escolas municipais e a prefeitura contratou 12 professores das diferentes línguas dar aulas a elas à tarde, o que alimentou essa dupla identidade. É como diz Marcos Terena: “Posso ser como você, mas você tem de deixar que eu seja eu.” 

JB - Existem estimativas sobre quantos idiomas são falados pelos índios? 

José Ribamar - Segundo Antônio Houaiss, muitas línguas são faladas no Brasil. Entre 220 mil verbetes, 45 mil são palavras indígenas. Carioca, na versão mais aceita, vem de acari, peixe que quando o rio seca abre buracos no barro e vive na lama. E oca é casa de peixe. Foi muito grande a contribuição do índio para nossa forma de falar e viver. E até hoje não foi feito um inventário dessas contribuições. Há pouca pesquisa, sobretudo nessa área de línguas. Ipanema, por exemplo, a sexta vogal, i, significa água. Panema é ruim, doentio, porque não tem peixe. Pavuna significa um lugar alagadiço, e por aí vai.  

JB - Como resgatar histórias dos índios no passado se a cultura deles não era valorizada? 

José Ribamar - Em 1997 eu e Márcia Malheiros abdicamos dos direitos autorais para distribuir gratuitamente a publicação “Aldeias indígenas do Rio de Janeiro”, que pode ser baixada no Portal da Secretaria Estadual de Educação. O trabalho teve a ajuda de 12 alunos pesquisadores, que se debruçaram sobre documentos manuscritos de grandes arquivos sobre índios. Um deles contava que dois fazendeiros brigaram entre si e um deles contratou índios como seguranças. À noite, o índio Manoel Silva (1817-1860) viu um movimento por trás da árvore e atirou. Acabou matando seu primo, que tinha se escondido ali para fazer suas necessidades. Manoel fugiu, foi preso pela polícia e levado ao Tribunal do Júri. O outro mostrava uma carta ao imperador do fim do século XVII de André Soares de Souza, engenheiro que construiu os Arcos da Lapa, em resposta à carta régia de 1686. Ele conta que toda a construção estava nas mãos dos índios, já que os escravos negros trabalhavam nas plantações de cana de açúcar e de café. O pagamento aos índios, no fim do expediente, era um prato de comida, e no fim do mês eles recebiam quatro pratos de algodão. Os dois processos contradizem a tese de que índio é preguiçoso e conversa fiada. Além de trabalhar para fazer uma obra do porte dos Arcos da Lapa, o índio foi às últimas consequências para defender o fazendeiro que o havia contratado. E pagou caro por isso. 

JB - Se os índios não podiam ser escravizados, como conseguiam que eles trabalhassem para a corôa? 

José Ribamar - Os índios tiveram um papel importante no Rio de Janeiro, conforme atestou a pesquisa no Arquivo Nacional, onde foram analisados mais de 300 livros manuscritos sobre a ação da polícia da côrte com os presos, criada por D. João VI. A maioria dos presos era de negros, porém, foi feito um livro só sobre os índios presos. O motivo alegado para a prisão de um índio que trabalhava reforma do Passeio Público, em fins do século XIX, era que “ele estava com uma atitude de quem estava pensando em roubar”. A explicação para isto é que como eles não podiam escravizar os índios, os prendiam por qualquer motivo e dessa forma eles eram obrigados a trabalhar. Eram políticas de recrutamento daquela época. 

JB - Como se explica a teoria de que os índios eram preguiçosos? 

José Ribamar - Nos anos 70, o antropólogo francês Jacques Nizot, povo que considera índice de qualidade de vida a redução do tempo de trabalho, esteve no Brasil e acompanhou com um cronômetro o trabalho das índias que levantavam às 4h30 para buscar mandioca, base alimentar da aldeia. A conclusão final de sua pesquisa foi a de que para viver bem alimentados a tribo necessitava apenas de três horas diárias de trabalho. Diante deste quadro, o colonizador disse que os índios são preguiçosos. Isso por que em tão pouco tempo de dedicação conseguem viver com abundância. O europeu julga por sua lógica. Só que o objetivo do índio não é acumular riqueza, mas sim satisfazer suas necessidades básicas.

JB - Como o senhor vê a criação do Conselho Estadual dos Povos Indígenas no Rio de Janeiro, representação só existente em estados como Paraná e São Paulo? 

José Ribamar - Faço parte do Conselho como representante da Uerj. Não confio muito nessas iniciativas burocráticas, que não costumam trazer resultados, porém , confio nos funcionários envolvidos na criação deste órgão. São pessoas empenhadas e comprometidas com a causa indígena, e torço muito para que dê certo, que efetivamente traga benefícios a essas populações que vivem no Estado do Rio de Janeiro em todos os sentidos.