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Percurso que liga o Rio de Janeiro a Petrópolis é tratado com desleixo

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Quando o ex-presidente Washington Luiz inaugurou a rodovia federal batizada com seu nome, em 25 de agosto de 1928, por muitos anos considerada a melhor da América do Sul, jamais imaginaria o desleixo com que seria tratado o percurso que liga o Rio de Janeiro a Petrópolis, mesmo privatizado desde 1996 e recebendo os gordos recursos de R$ 12,40 por veículos de dois eixos e de até R$ 74,40 pelas carretas de seis eixos que passam pelo posto do pedágio. A paralisação das obras para duplicação de quinze quilômetros da descida da serra, iniciadas em 2013 e que já teriam consumido R$ 500 milhões, deixaram como saldo, entre outros problemas, um viaduto com mais de 500 metros de extensão que não leva nada a lugar nenhum; um túnel com quase cinco quilômetros de extensão, parcialmente perfurado, com áreas de entrada e saída totalmente degradadas e o abandono do local onde ocorreu um enorme deslizamento no km 81,5 da Estrada do Contorno, em novembro de 2017, que deixou desalojadas mais de cem pessoas. 

Por motivos de segurança, a queda de barreira provocou a duplicação da pista ao longo de cerca de três quilômetros nos arredores da cidade serrana. O trecho fica totalmente engarrafado, sobretudo durante os feriados, como aconteceu no da Páscoa. Só a interrupção das obras, por si só, já causa longas retenções aos domingos, quando os visitantes da única cidade imperial das Américas retornam para o Rio de Janeiro, de sua Região Metropolitana e de outras cidades do país.      

Se no domingo seguinte à inauguração, em 1928, passaram pela estrada 1.783 veículos, em 2017, nas estimativas da Concer, transitaram por ali 23,7 milhões de veículos, volume um pouco menor que o de 2016, de 24,5 milhões de veículos. A maior redução  registrada, conforme a concessionária, foi no fluxo de veículos de carga, provável resultado da crise econômica. A estrada representa um importante fator no desenvolvimento econômico social para a cidade serrana, e não há prazo definido para o fim das obras. Só o motel Play Love, localizado no trecho onde o trânsito foi interrompido, ostenta a monumental faixa “estamos em funcionamento” e oferece pacotes românticos para não fechar as portas. O estabelecimento fechou por 20 dias em novembro, e o movimento permaneceu em queda até março, quando houve um esboço de reação. “Os antigos clientes sumiram, mas começam a aparecer novos”, diz uma funcionária que prefere não se identificar. 

Embora não disponha de estatísticas sobre o fechamento de estabelecimentos nos últimos dois anos, Samir El Ghaoui, do Convention Bureau e proprietário do Hotel Arcádia, cita o exemplo da rede Quality, com 160 quartos, que deixou de funcionar há dois meses pela falta de movimento. “O descaso da Concer acontece há muito tempo. Tanto o turismo como os moradores dependem dessa estrada, vital para a cidade”, afirma. Guilherme Lacombe, da Pousada Alcobaça e diretor do Conselho Comunitário de Segurança do município, diz que, quando tomba uma carreta na subida da serra, os clientes não conseguem chegar. “Já aconteceu de perdermos mais da metade das reservas, pois nossa clientela é composta, principalmente, por cariocas. As incertezas da serra afastam turistas, e a cidade perde com isso”, lamenta. 

O mais grave, porém, é a situação dos moradores desalojados pelo gigantesco deslizamento de terra ocorrido no dia 7 de novembro de 2017, pouco depois das 8h. Sulamita Leite Morgado, de 25 anos, dormia quando foi acordada pelo filho de 10 anos. “Foi um barulho terrível, a terra saiu arrastando tudo”, lembra a petropolitana, cuja casa ficava bem em cima da cratera formada pelo incidente. Ela ainda teve tempo de pegar sua caçula, Renata, hoje com 1 ano e quatro meses, o filho e seguir para a casa da sogra. “Minha casa cedeu, descolou. Era uma construção nova, nos mudamos há apenas cinco anos”, diz Sulamita, que continua vivendo do outro lado da estrada, na casa alugada pelo Concer por mil reais. 

Aquele passado recente ainda lhe causa arrepios. Sulamita passou quatro dias na casa da sogra e de lá foi alojada pela vizinha Conceição, por uma semana. Foi quando uma crise de vesícula a hospitalizou. Uma semana depois, quando saiu do hospital, voltou para a casa de Conceição, e seu marido, o pedreiro Paulo Cesar Kepller, de 29 anos, teve de parar de trabalhar para cuidar da mulher e do casal de filhos. Na última terça-feira, ela acompanhou o JORNAL DO BRASIL  até sua casa, com Renata no colo, e mostrou as profundas rachaduras por todo o imóvel. O buraco, bem na frente da casa, foi totalmente tomado pelo mato. 

Segundo Sulamita e Conceição, no mesmo dia em que a reportagem foi ao local, na terça-feira passada, a equipe do Concer que permanecia ali foi embora. Não há vestígios de obras. Prováveis funcionários da empresa, que não se identificaram, disseram que a única coisa feita no local foram levantamentos topográficos. “Agora querem que a gente volte para cá e dizem que a construção do túnel não teve nada a ver com o desabamento”, desabafa Sulamita, lembrando que a cada vez que ocorriam explosões para a abertura do túnel os moradores sentiam tremores na terra.

Vila fantasma 

Parte do Bairro Capela, ou Vale da Escola, onde ocorreu a tragédia, foi totalmente interditado e hoje parece uma vila fantasma. As poucas casas estão fechadas, e a Escola Municipal Leonardo Boff, que “ forma cidadãos desde 1986”, fechou no dia do acidente e está abandonada. Era lá que estudava o filho mais velho de Sulamita, cujos colegas foram transferidos para uma unidade no bairro Duarte da Silveira, próximo dali. Ao lado do buraco apodrece um carro em meio à lama e lá dentro há um container branco, também em processo de oxidação. O mato que cresce no local evidencia o abandono, também constatado por funcionários do Departamento Nacional e Infraestrutura de Transportes (DNIT), que estiveram ali no mesmo dia do JB e preferiram não se identificar (um deles portava um crachá do órgão): “Viemos fiscalizar a obra, que está totalmente abandonada”, disse um deles. 

O drama social é sem dúvida o mais grave, os problemas, no entanto, se sucedem. No km 95 da subida da serra, há uma vista panorâmica para uma das mais impressionantes imagens da obra paralisada: a estrutura de um viaduto com cerca de 500 metros de extensão, já tomada pelo mato e pichações. Há vestígios de roupas e de comida embaixo da construção. Lá do alto dá para ver um trecho da estrada que chegou a ser pavimentado. Outra cena parecida acontece perto da saída 89 da subida da serra, onde brota outro viaduto que não leva nada a lugar nenhum, com aproximados 50 metros de extensão. A extremidade suspensa no ar aponta para o meio da mata. Isso sem falar na sucessão de buracos, remendados com asfalto que destoa do concreto, o material mais duradouro usado na estrada. São vários os canteiros de obra abandonados, com material em deterioração. A alça usada por quem sai do trecho de mão dupla para pegar a estrada de descida também impressiona pela péssima conservação. 

Na terça-feira, uma equipe trabalhava na entrada do túnel inacabado. Porém, conforme informaram, estavam ali para reparar os estragos provocados pelos últimos temporais. Na saída do outro lado, cerca de dois quilômetros depois, impressiona o trabalho de contenção realizado no morro. Um riacho sai de dentro da boca do túnel, e há uma ponte de metal abandonada sob mais um viaduto que não leva nada a lugar nenhum, provavelmente usada pelos funcionários quando as obras estavam em execução. No rio que desce do morro sob a pista, há muitos vestígios de lixo, chinelos, plásticos, e quando se olha para cima dá para ver a comunidade de moradores que joga ali seus detritos sem cerimônia. Desolação que atrai desolação.

PREFEITURA DESMENTE A CONCER

Ao contrário da informação da Concer, de que “o afundamento de solo não teve como causa o túnel da Nova Subida da Serra”, no que ela diz ser o mais recente laudo técnico da Defesa Civil sobre o desabamento no km 81,5 da Estrada do Contorno, o parecer entregue pela Prefeitura de Petrópolis ao Ministério Público Federal (MPF), em 4 de dezembro, aponta que a falta de monitoramento do túnel da Nova Subida da Serra — abandonado desde novembro de 2016 — foi  fator determinante para o desastre, que poderia ser prevenido. 

Ainda de acordo com a prefeitura, em fevereiro a Defesa Civil analisou o pedido da concessionária para a liberação da estrada, mas deu parecer contrário e aponta que a Concer não apresentou estudos conclusivos sobre a influência da paralisação da obra do túnel na abertura da cratera. Ressaltou ainda que o monitoramento apresentado pela concessionária não leva em consideração o tráfego constante e intenso de veículos pesados, não sendo possível chegar a conclusões sobre o comportamento daquele trecho da rodovia numa situação de trânsito normal. No documento, a Defesa Civil destaca ainda a importância de uma análise hidrogeológica daquela região. 

Por medida de segurança, a prefeitura considera que não existe prazo para a liberação da pista, da Escola Municipal Leonardo Boff, nem das 55 casas, na região conhecida como Vale da Escola. De acordo com os técnicos da Defesa Civil, a liberação da área só será possível após a realização de intervenções estruturais no interior do túnel. 

Embora a Concer explique que as obras da Serra de Petrópolis foram iniciadas em maio de 2013 e paralisadas em julho de 2016, “por força da inadimplência que a empresa sofreu da União pelo 12º Termo Aditivo ao contrato de concessão”, o embargo das mesmas, na realidade, foi pedido pelo Tribunal de Contas da União, por suspeita de superfaturamento. O edital de licitação, de abril de 1995, previa o custo de R$ 80 milhões para as obras de duplicação, que corresponderiam a R$ 300 milhões em valores atualizados. Já o projeto executivo chegou a pouco mais de R$ 1 bilhão, conforme a assessoria de imprensa da Concer, que arcaria com R$ 300 milhões, cabendo o restante à União, no caso, ao Ministério dos Transportes. 

Pelo contrato, o governo federal deveria fazer três pagamentos pré-fixados, ou então estender o prazo da concessão. O primeiro aporte, correspondente a 30% do valor total, deveria sair em dezembro de 2014, e o segundo, de 50%, até dezembro de 2015.  O terceiro, com os 20% restantes do valor total, deveria ser realizado em até 30 dias após a conclusão da obra. “No entanto, apenas parte do primeiro aporte de 2014 foi pago à Concer. A partir de então, nenhum valor foi liquidado em favor da concessionária, descumprindo  o que foi contratualmente pactuado”, informa a assessoria de imprensa da empresa. Até a interrupção, chegaram a ser realizadas 50% das obras, que, no auge da execução, chegaram a empregar 1.200 operários diretos e 400 indiretos, em nove canteiros de obra.  

O Ministério dos Transportes não respondeu às perguntas enviadas pelo JB até o fechamento desta edição.