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Cria da favela, vereadora da cidade

Pesquisadores derrubam tese de que foi Zona Sul que elegeu Marielle

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Não bastou matarem Marielle Franco. Mesmo após ser executada a tiros na noite daquela quarta-feira, dia 14, a vereadora do Psol do Rio de Janeiro continua sendo alvo de ataques. Se do primeiro atentado, até agora, mais de duas semanas após o ocorrido, a polícia não apresentou sequer suspeitos, ao menos sabe-se de onde estão partindo os outros: da internet. A irmã de Marielle, Anielle Silva, e a viúva da vereadora, Mônica Tereza Benício, estão travando – e vencendo – verdadeiras batalhas na Justiça para retirar do ar as fake news das redes sociais, posts com falsas acusações e vídeos difamatórios, todos numa tentativa de desconstruir a imagem política de Marielle, de perfil popular, e ainda desvincular as pautas pelas quais ela lutava das causas do seu assassinato.

“Estão tentando desfazer tudo o que ela sempre foi, a mulher socialista, feminista, negra, favelada, lésbica e que enfrentava esse modelo de segurança pública que existe contra nós e que foi potencializado pela intervenção no Rio. Quem mandou matar Marielle temia o enfrentamento com ela e não queria perder seus privilégios. Dissociar Marielle do que ela ainda é significa executá-la de novo e sempre”, afirma com veemência a amiga e também vereadora do Psol-Niterói, Talíria Petrone, vereadora mais votada, também nas eleições de 2016, em Niterói.

Um dos principais recursos usados nessa guerra movida por opositores de Marielle está na própria votação que fez dela a quinta vereadora mais votada do Rio em 2016. Alegam que não teria sido eleita com os votos da favela que ela defendia. Marielle Franco sempre fez questão de registrar que era “cria da favela”, nascida no Complexo da Maré. Realmente, os números absolutos da eleição apontam que a maioria de seus eleitores estava fora da Maré: 32% do total dos 46.502 votos recebidos por ela vieram da Zona Sul; 18%, da Zona Norte, segundo dados levantados a partir de planilhas do Tribunal Regional Eleitoral.

Mas cientistas políticos e pesquisadores ouvidos pelo "Jornal do Brasil" rebatem essa tese. "A contradição até existe, mas a verdade é que ela teve uma eleição pulverizada pela cidade. A Zona Sul ajudou a elegê-la, mas não apenas essa região", afirma o cientista político Ricardo Ismael, que foi professor e orientador da vereadora do Psol na PUC-RJ.

Josir Gomes, do grupo de pesquisadores Perfil-i, que mapeou a votação recebida por Marielle, segue a mesma linha de raciocínio de Ismael: "Ela recebeu votos em todas as regiões e em 100% das seções eleitorais da cidade com mais de 1.000 eleitores. E é bom lembrar que na Zona Sul também tem favela", o que demonstra, segundo ele, a capilaridade da candidatura de Marielle.

Gomes vai além, ao colocar na balança um outro ponto importante para a análise da eleição: o fato de que a geografia eleitoral do Rio mistura "asfalto e favela pelas zonas eleitorais". Ele cita como exemplo a própria Maré, onde, segundo o TRE-RJ, há 8.984 eleitores, dos quais apenas 50 deram seu voto a Marielle. "Mas as seções eleitorais da Maré são novas, e a maioria dos moradores de lá vota em seções mais antigas, como em Ramos e Bonsucesso", explica o pesquisador.

"Fizemos, então, nova consulta às bases de dados, agora considerando seções da região da Leopoldina, que reúne os bairros de Ramos, Bonsucesso e Maré. Assim, chegamos à conclusão de que Marielle teve mais de 3 mil votos por lá", esclarece Josir Gomes. Por essas contas do grupo de pesquisadores do Perfil-i, o que se percebe é que a vereadora recebeu um percentual de votos muito semelhante, ao se considerar os números de eleitores de cada região: na Zona Sul, obteve 2,6% de seus votos totais; já na região da Leopoldina, esse percentual foi de 2%.

Josir Gomes não tem dúvidas ao afirmar que "Marielle recebeu votos vindos de toda a cidade. As propostas dela foram aceitas por eleitores de todas as regiões. Mas o mais engraçado é que, se há uma contradição nessa história, ela está no argumento dos difamadores: se Marielle tivesse sido eleita com o voto dos traficantes, como andam espalhando, como explicar essa tese se ao mesmo tempo afirmam ter sido a Zona Sul que a elegeu?", questiona.

Interferência de milícias

Outra característica de campanhas em favelas são as dificuldades impostas por grupos ligados ao tráfico de drogas e milícias, que só permitem a circulação de candidatos apoiados por eles, praticamente impondo aos moradores a votação nesses nomes.

"Onde há presença forte de facções criminosas, do tráfico, da milícia, a liberdade das associações de moradores, por exemplo, para apoiar e divulgar um nome durante a eleição, acaba muito prejudicada. E três facções dividem o território da Maré", analisa o ex-professor de Marielle na PUC, Ricardo Ismael, que chegou a dar palestras na Maré a convite da vereadora. "Mesmo para um morador, é complicado vencer essa barreira. Muitas vezes, paga-se até com a vida por enfrentar esses grupos", diz Ismael.

Ele também leva em consideração a interferência religiosa no perfil de votação. "Marielle representava a luta por direitos que são muito combatidos, por exemplo, por igrejas evangélicas, como a causa LGBT e o debate sobre aborto. Isso certamente trouxe dificuldades para uma melhor evolução e aceitação da candidatura dela. Já na Zona Sul, esses temas são mais aceitos", afirma.

O professor da PUC-RJ enumera, ainda, o fato de ser comum que os eleitores decidam seus votos na última hora. "E houve uma grande onda, no fim do primeiro turno, a partir do boca a boca de celebridades, intelectuais e formadores de opinião da Zona Sul, onde Marielle acabou realizando muitas reuniões. Viram nela representatividade e passaram a apoiá-la", diz Ismael, acrescentando: "O Psol tem dificuldade de entrar em comunidades, mas Marielle, que enfrentava sua primeira eleição, colou no Marcelo Freixo, com quem já havia trabalhado como assessora. Ela o levou até a Maré, mas também se beneficiou claramente do perfil de votos que normalmente vão para ele. Há uma correlação clara entre a votação dela e a do Freixo", avalia.

No rastro do partido

Felipe Borba, cientista político e professor da Universidade Federal do Estado do Rio (Unirio), também  aponta a ligação de Marielle com o partido como indicador para explicar o perfil de votos que ela recebeu. Borba afirma que os votos da vereadora vieram em maior peso de locais onde o Psol é mais forte, "especificamente onde o deputado estadual Marcelo Freixo concentra grande parte de seu eleitorado”, afirma.

Para Borba, o posicionamento do partido, baseado num discurso de identidade, também dificulta o convencimento dos eleitores de favelas, que procuram por candidatos que acenem com melhorias concretas em suas vidas. "Foi algo que PDT e PT conseguiram fazer no Rio, sobretudo após assumirem governos e colocando em prática suas propostas”, explica, ressaltando, porém, outros motivos para justificar o tipo de voto nas favelas, como a presença de nomes já tradicionais na política, se apresentando diretamente como candidatos ou apoiando algum nome da comunidade.

Foi assim, por exemplo, que Hildebrando Gonçalves Rodrigues, o Del (PR), obteve nas eleições de 2016, para vereador, mais de 8 mil votos na Maré, enquanto Marielle não chegou a dois mil votos, segundo dados do Tribunal Regional Eleitoral do Rio.

O trunfo de Del, no caso, foi o apoio do ex-governador Anthony Garotinho durante a campanha eleitoral. Apesar disso, fora da Maré, ele não recebeu votos suficientes para se eleger. Naquele ano, Marielle acabou sendo a única candidata de uma favela a assumir como vereadora da cidade do Rio.

Carlos Augusto Montenegro, presidente do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), também considera que o peso do partido seja a melhor explicação para o perfil de votos em Marielle Franco, durante a eleição de 2016. Para Montenegro, não foi uma votação da favela, mas sim do partido.

“Numa ordem de importância, foram votos que vieram por ser Psol; depois pela conexão à figura de Freixo e só então o reconhecimento da comunidade”, avalia o presidente do Ibope. Montenegro acredita que os eleitores de Marielle na Zona Sul, com perfil "mais intelectualizado", viram na nova candidata uma alternativa de renovação, dentro do cenário político já tão desgastado.

A própria vereadora, na época de sua eleição, lembrou que os problemas da Maré se repetiam em toda a cidade. Por isso, Marielle entendia o motivo de sua campanha ter repercutido positivamente em outros pontos do Rio, fora de sua comunidade. Pela multidão que se reuniu na Cinelândia, na quinta-feira, dia 15, durante o velório da parlamentar, a amplitude desse alcance vinha efetivamente se consolidando.

Além dos limites da favela

"Marielle fez tudo certinho: estudou, fez graduação, mestrado, utilizou a educação para melhorar de vida, assessorou por 10 anos um político, obteve voo próprio eleitoral, atendia vítimas policiais e não-policiais, tinha discurso moderado. Fez tudo certo", avalia o sociólogo e cientista político Paulo Baía, que não considera haver contradição nos votos recebidos em 2016 pela vereadora do Psol.

Segundo Baía, que é professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, o fato de Marielle ter nascido na Maré e isso não coincidir com o mapa de votação significa apenas que a atuação dela tinha visibilidade além dos limites da comunidade. "Era uma militante social e uma política de pauta específica. O tipo de voto que recebeu foi um voto de opinião. Mas a pauta de atuação dela nunca perdeu o vínculo com a comunidade, era a sua temática central, tanto na graduação na PUC ou no mestrado na UFF, onde desenvolveu trabalhos que tinham ligação com a comunidade", afirma.

O cientista político lembra, ainda, que nas favelas e comunidades o sistema de clientela ainda sustenta votos de vereadores. "Mas Marielle não era candidata de reduto eleitoral, era pautada por sua atuação social e como assessora parlamentar", diz Baía.

Assistencialismo x ação política

As práticas do assistencialismo e da troca de favores entre políticos e associações de moradores não nasceu na Maré nem é exclusividade daquela região, mas pode explicar, em parte, o porquê de figuras nascidas na comunidade, como Marielle Franco, não conseguirem uma votação tão expressiva dentro de casa. Como explicou o cientista político Felipe Borba, é comum os eleitores acabarem optando pelo voto em candidatos mais tradicionais e que fazem algum tipo de trabalho nesses locais, criando currais eleitorais.

É o caso, por exemplo, do ex-deputado Gerson Bergher, falecido em 2016, e que possuía centros sociais na Maré. Viúva de Gerson, Teresa Bergher é atualmente vereadora pelo PSDB e mantém atuação política naquela área, com apresentação de projetos na Câmara Municipal, mas ainda colhendo os frutos da imagem construída por anos naquela região da cidade, inclusive de quando foi administradora regional da Maré.

De ofertas de remédios e tratamentos de saúde à construção de quadras de esportes, a cultura assistencialista ainda garante muitos votos. “São políticos mais antigos, com soluções para problemas do dia a dia, que acabam atraindo o eleitorado”, diz Felipe Borba.

Essa vantagem na hora da campanha pode ser exemplificada ao comparar a votação de Marielle Franco e Teresa Bergher na 161ª Zona Eleitoral, que engloba parte de Bonsucesso e Ramos, reunindo 75.888 eleitores. Lá, Marielle recebeu 1.688 votos (2,2% do

total de eleitores registrados naquela zona eleitoral). Já Teresa obteve 6.206 votos (8,1% dos eleitores daquela área).

Para a assistente social da ONG Redes da Maré, Lidiane Malanquini, a troca de favores ainda é um processo cultural muito arraigado no contexto de eleições. Para ela, o tipo de atuação como a de Marielle, pautada em questões de direitos humanos para negros, mulheres, LGBTs e favelados, também sofre muito preconceito, inclusive dentro da favela. "Infelizmente as pessoas ainda têm o vício de registrar o nome daquele candidato que oferece churrasco e cerveja durante a campanha, cedendo a essas táticas políticas históricas", afirma.

Segundo a assistente social, "Marielle nunca cedeu a estratégias de troca de favor. Ela circulava por todos os territórios, dentro e fora da Maré. Construiu a candidatura junto às instituições da Maré. Mas aqui temos cerca de 140 mil habitantes. É muito difícil conseguir chegar a todos".

Uma outra via

Na contramão da prática assistencialista, Marielle se firmou como figura de destaque na Maré por sua militância pelos direitos humanos, trabalho que começou na época em que fazia pré-vestibular comunitário, quando perdeu uma amiga vítima de bala perdida num tiroteio entre policiais e traficantes do complexo de favelas. Antes de ser eleita, a vereadora também chegou a coordenar, ao lado de Marcelo Freixo, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).

Em um período curto de mandato, Marielle apresentou 16 projetos de lei na Câmara, dois deles aprovados, o que legalizou e regulamentou a atuação de mototáxis – transporte muito usado por moradores de favela – e a restrição de funções que podem ser exercidas por Organizações Sociais (OSs) em hospitais.