Dando continuidade ao ciclo de plenárias de recomendações, a Comissão da Verdade do Rio realizou, nesta sexta-feira (31/10), o Fórum de Participação sobre autos de resistência, mecanismo criado em 1969 pela Ordem de Serviço Nº 803 da Polícia da Guanabara e que continua a ser usado pelas polícias, especialmente a militar. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), de janeiro a agosto deste ano, já foram contabilizados 386 autos de resistência no Estado do Rio de Janeiro, um acréscimo de 123 em relação ao mesmo período do ano passado.
"Meu filho morreu com um tiro nas costas dado por um policial militar", contou Ana Paula de Oliveira, moradora de Manguinhos. "Ele saiu por volta das 15h e, uma hora depois, eu recebi a notícia de que ele estava morto. O mais difícil foi provar que ele foi a vítima e não o PM que o matou. Essa dor é muito grande", disse ela.
Mônica Susana, integrante do Movimento Moleque, perdeu o filho do meio na mesma situação. Na certidão de óbito: auto de resistência. "Como pode ser auto de resistência se ele estava ajoelhado e com as mãos levantadas?", questiona.
Para o cientista político e delegado Orlando Zaccone, o ordenamento jurídico confere aos autos de resistência uma aparência de legalidade, assim como eram as mortes em confronto na ditadura militar. "Como está dentro da lei, a morte passa a ser legítima", disse ele, que completou: "No processo, a vítima acaba sendo investigada e não o policial. Fazem uma espécie de inventário moral do morto com justificativas como: comunidade favelada, intenso tráfico de entorpecente, extremada violência. Cheguei a ver um caso no qual a mãe da vítima dizia: 'ele, desde criança, me dava trabalho. Foi bom para ele'. Isso tudo para chegar a conclusão de que já morreu tarde. É a construção do inimigo, do matável".
Quem também fez um paralelo com a ditadura foi o sociólogo Michel Misse. Ele tem um estudo mostrando que, entre 2002 e 2012, mais de dez mil pessoas foram mortas em confronto com a polícia em casos registrados como autos de resistência que, para ele, são um eufemismo para a classificação 'mortes em confronto', usado pela ditadura militar. "É preciso que a sociedade e os próprios policiais se defendam do mau uso desse poder discricionário. É interesse de todos que eventos como esse sejam cercados da maior cautela e que sejam esclarecidas as circunstâncias", disse ele, que fez algumas recomendações:
"Controle externo da atividade policial quando for caso de auto de resistência, que o policial seja acompanhado por especialistas, que possam produzir um laudo, e, tendo se envolvido em mais de um auto de resistência, que seja afastado de suas funções para uma averiguação mais aprofundada".
Na ocasião, foi exibido, em vídeo, o depoimento de Marilene Spigner, irmã de José Roberto Spigner, morto em 1970. Segundo versão oficial dos órgãos da repressão, ele foi morto em uma troca de tiros, mas ele foi executado dentro das dependências de um órgão da repressão. "A dor é muito forte sempre que lembro dessa história".
As recomendações sugeridas serão incorporadas no relatório final da CEV-Rio a ser publicado em 2015. Até o final deste ano, a CEV-Rio vai realizar mais duas plenárias: Liberdade de expressão, liberdade de manifestação e democratização dos meios de comunicação (28/11) e Recomendações das Comissões da Verdade e da Corte Interamericana (17/12). "Essas plenárias permitem uma discussão específica e qualificada sobre cada tema das recomendações e a ideia é trazer especialistas para, junto conosco, pensar essas sugestões ao Estado brasileiro. Não queremos que o relatório seja meramente um ato burocrático", disse Wadih Damous, presidente da CEV-Rio.
Também estiveram presentes ao debate, o assessor do Fórum de Juventude do Rio de Janeiro, Fransérgio Goulart, e Natalia Damázio, da ONG Justiça Global. A primeira reunião aconteceu no dia 10 de outubro e discutiu a abordagem da ditadura militar nos espaços educacionais A atividade reuniu especialistas no assunto, como as professoras Luciana Lombardo e Maria Paula de Araújo, integrante da Comissão da Verdade da UFRJ, o professor de História da UFF, Demian Melo, e Mauricio Santoro, representante da Anistia Internacional.