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Crítica de teatro: 'A propósito de senhorita Júlia'

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A obra de August Strindberg para teatro é, sem discussão, além de precursora do teatro moderno do século XX, com o interesse que demonstra pela exploração da subjetividade das personagens que põe em cena, uma das mais preocupadas em estudar a mulher na busca pela libertação das amarras impostas pelo sistema patriarcal. Suas peças procuram analisar, embora nem sempre de um ângulo favorável, o novo comportamento feminino que transformava costumes do final do século XIX. Ao investigar conflitos resultantes das mudanças nas relações de gênero, Strindberg conclui que seria contrário à natureza o desejo da mulher de querer igualar-se aos homens.  Mesmo que tal postura nos pareça anacrônica hoje, ela reflete com nitidez a dificuldade em separar biologia e cultura, ainda comum em nossos dias, e mostra, efetivamente, como o autor enxergava as estruturas sociais: uma prisão da qual não se podia sair.  Nesse contexto, a liberdade aspirada pela mulher resultaria apenas mais uma quimera.

Em seu prefácio à peça Senhorita Júlia, Strindberg chega a tratar a personagem principal como um exemplo de “semimulher” (meio mulher e meio homem em seus desejos), fadada a perecer pela falta de harmonia com a realidade.  “O tipo é trágico”, diz ele, “oferecendo o espetáculo de uma luta desesperada contra a natureza”.  No seu embate com Jean, criado com quem acaba se relacionando sexualmente e perdendo, com isso, a honra dentro dos padrões morais do final do século XIX, Júlia opta pelo suicídio.  É ela, finalmente, a mais fraca.  Enquanto permanece como patroa e virgem, Júlia pode exercer a força de sua classe; contudo, ao se transformar na mulher de Jean, o empregado, e assumir um comportamento contrário àquele previsto pelos códigos sociais, ela perde seus trunfos.

Toda a peça busca estabelecer como as relações entre os gêneros expressam as relações de poder.  Para Strindberg, ainda que cerceador, o papel reservado à mulher a protegia na estrutura social, dava-lhe um espaço de conforto. Eis o problema de Júlia: ao exercer a própria sexualidade, ela sai de um pedestal que a sufocava, mas que também a protegia.  Ao abandonar esse espaço, ela não tem quem a proteja, nem tampouco pode se proteger sozinha.

Obviamente, tais questões são bastante pertinentes ao contexto histórico no qual Strindberg concebeu sua trama e, de certa maneira, permanecem com alguma força em culturas onde o patriarcado, apesar de decadente, ainda se coloca como modelo dominante.  A montagem  A propósito de senhorita Júlia propõe uma adaptação do clássico do autor sueco que localiza a história no universo brasileiro e carioca do início da era Lula, quando um ex-operário consegue o apoio necessário para tornar-se presidente da república. Usando como pano de fundo um país que parece estar superando seus preconceitos de classe, o adaptador explora a dualidade do ser e do parecer: se um torneiro mecânico consegue subir ao mais alto posto da república, um motorista particular poderia casar-se com a filha de um político corrupto e milionário?  Continuaria engraxando os sapatos do patrão, mesmo dormindo com a filha dele?  O texto adaptado, muito bem urdido por José Almino, com base em After Miss Julie, de Patrick Marber, explora essas dúvidas e tem na primeira parte seu grande trunfo, quando os diálogos originais de Strindberg cabem muito bem na situação proposta.  No entanto, na segunda parte, a virgindade de Júlia pesa: afinal, em pleno século XXI, a filha de um político corrupto seria uma moça virgem?  Esse é o ponto mais frágil do espetáculo, que sobrevive, contudo, muito bem ao problema de verossimilhança colocado por esta situação específica, devido, principalmente, ao maravilhoso trabalho de interpretação de Armando Babaioff  e  Alessandra Negrini, que defendem seus personagens com total mestria e rigor. 

A direção de Walter Lima Jr. mostra-se bastante segura no que diz respeito ao desempenho dos atores, explorando ao máximo todo o potencial dos intérpretes e do texto; contudo, indica alguns problemas para lidar com transições de tempo. O cenário de José Dias é belíssimo e bastante adequado à proposta do espetáculo.  Enfim, A propósito de senhorita Júlia resulta um programa emocionante e imperdível para aqueles que amam o bom teatro.

Cotação: ** (Bom)