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Delegada: apenas 10% dos casos de abuso infantil são denunciados

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Dados do Centro de Referência no Atendimento Infanto-Juvenil (Crai) apontam que o Estado do Rio Grande do Sul registrou uma média de 5 casos diários de abuso infantil no ano passado. 

O número não representa necessariamente um aumento de casos, mas um crescimento uma intolerância social contra o abuso de menores, afirma a delegada do Departamento da Criança e Adolescente (Deca) da Polícia Civil Eliete Matias Rodrigues. No entanto, a delegada acredita que 90% dos casos não são denunciados.

"Sabemos que a cifra de crimes que não são denunciados ainda gira em torno de 90%", diz. Ela afirma que o grande número de denúncias "pode ser resultado de uma conscientização maior e da divulgação dos números dos mecanismos para a denúncia", explica a delegada.

O Crai é um centro que presta atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência, considerado referência no Brasil. Os casos atendidos são, em sua maioria, encaminhados pelos Conselhos Tutelares, delegacias da criança e adolescente, serviços de saúde e escolas. No centro é realizado o atendimento inicial, com avaliação psicossocial, registro de Boletim de Ocorrência policial e os exames periciais. "Incluindo o procedimento profilático das situações de estupro dentro das 72 horas", completa a coordenadora do centro, a psicóloga Eliane Soares.

Denúncias 

Para denunciar casos de abuso infantil a população pode recorrer ao Disque 100 que encaminha as suspeitas para os órgãos competentes em cada região. O Rio Grande do Sul ocupa a 9º posição no ranking nacional atrás de São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Maranhão, Pernambuco, Ceará e Amazonas. No entanto, uma análise proporcional aponta que os Estados do Sul do País ficam em segundo lugar no ranking de denúncias.

Segundo os especialistas, o abuso infantil ocorre em todas as classes econômicas, no entanto, de acordo com o poder aquisitivo da família, muda a forma como o episódio é tratado. Entre os mais pobres, existe uma intervenção maior de agentes externos como professores, assistentes sociais e conselheiros tutelares. Já entre os mais ricos, o assunto é tratado dentro dos consultórios particulares para evitar a exposição.

"A gente vê isso em razão do segredo maior que permeia, e os interesses que às vezes estão envolvidos em todas essas relações. É bem mais comum uma escola pública denunciar do que, eventualmente, uma escola particular. Isso reflete ainda como uma família de uma classe mais baixa lida com essa violência em relação a uma família de classe mais alta. Então, a família de classe mais alta não vai na polícia, não vai no Conselho Tutelar, não vai no serviço de saúde, vai levar isso para os consultórios particulares, vai levar isso para uma outra esfera da família, mas não vai expor as suas famílias. Isso, possivelmente, é um grande diferencial ", afirma a delegada Eliete Matias Rodrigues.

Dificuldade de provas

O subprocurador-geral de Justiça do Rio Grande do Sul, Marcelo Lemos Dornelles, apontou que em casos de abuso infantil o maior desafio é a produção de provas, já que a maioria dos casos não deixa vestígios que possam ser detectados por meio de exames. "É importantes construir a prova porque quando o caso vai para a área criminal, acontece um choque, porque no processo criminal, as garantias são do réu. Esse é, talvez, um dos crimes mais clandestinos, pela dificuldade de transformar em prova pericial o que realmente aconteceu".

A psicóloga Lilian Milnitsky Stein, que possui pós-doutorado em psicologia cognitiva, afirma que, na maioria dos casos, a única prova é o testemunho da vítima, ou seja, a memória da criança. "Nós sabemos por uma série de trabalhos que apontam que esses abusos que acontecem com crianças e adolescentes, em 96% dos casos não deixam vestígios", diz. Ela afirma que a maioria das crianças abusadas são muito pequenas ou sofrem de algum tipo de desabilidade intelectual ou cognitiva.

Lilian afirma que em países com legislação mais avançada como Estados Unidos e Inglaterra, os depoimentos de crianças vítimas de supostos abusos são tomados o mais rápido possível para evitar que interferências possam contaminar a memória do menor, e com a ajuda da gravação em vídeo, que evita que a criança passe por novas entrevistas sendo revitimizada.

A delegada do Deca Eliete Matias Rodrigues diz que algumas cidades já adotaram a técnica de gravar o depoimento das crianças para fins judiciais. "No sistema judicial brasileiro ainda existe a questão de que a prova deva ser repetida em juízo. A ideia é que esse depoimento gravado na polícia substitua o depoimento na fase judicial, evitando que a criança tenha que ser novamente ouvida. E ainda que ela seja ouvida, eu já tenho demonstrado como foi feita essa coleta de testemunho na fase policial", afirma.