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STJ e ativismo judicial

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No julgamento do HC n. 399.109, impetrado pela Defensoria Pública de Santa Catarina, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou entendimento de que o mero inadimplemento de ICMS, mesmo quando devidamente declarado, constituiria crime contra a ordem tributária. O tema, que permanecia controvertido na 5ª e 6ª Turmas, até então, foi pacificado nos termos do voto do relator ministro Rogério Schietti Cruz. Em outras palavras, o STJ estabeleceu configurar um crime o simples ato de não pagar no prazo estabelecido tributo devidamente declarado ao Fisco, deixando de considerar esta conduta como uma mera dívida entre o contribuinte e o Estado.
Em nosso entender, porém, essa decisão confirma a cada vez mais recorrente utilização do Poder Judiciário como agente político, ultrapassando os limites do caso concreto e interferindo na atuação originária dos outros poderes, seja o Legislativo ou o Executivo. Tal fenômeno tem sido denominado como ativismo judicial, populismo judicial ou judicialização da política.
Em primeiro plano, importante compreender o que constitui um crime de natureza tributária. Entre as diversas hipóteses previstas pelo legislador (a Constituição Federal assevera que somente há crime se definido previamente em lei), todas pressupõem alguma forma de conduta fraudulenta direcionada a iludir o Fisco e suprimir tributos. Ou seja, sem o ato fraudulento não há crime fiscal, mas mera dívida entre o contribuinte e o Estado. Esta é a essência de todo e qualquer crime tributário. É isso, afinal, o que justifica diferenciar uma infração administrativa fiscal de um crime.
A decisão em questão equivocadamente afasta a necessidade da “fraude” e “clandestinidade” extraída da redação legal do aludido crime. Ao interpretar a lei, o julgador alterou o significado da norma pretendido pelo Legislativo e, ao que nos parece, com base em argumentos de ordem política afetos ao Executivo. Na prática, cria-se nova lei por via judicial e com conteúdo de governo.
No que toca ao seu viés político, chama a atenção na referida decisão um capítulo intitulado “A importância da tributação – tutela penal”. Para que este capítulo se a própria legislação brasileira já prevê os crimes que combatem os sonegadores fiscais? O que busca a decisão ao apresentar seus argumentos? Com a devida vênia, parece que a finalidade é ressaltar a grave crise orçamentária vivida pelos estados membros, fato notório, assim como os impactos da sonegação fiscal sobre ela.
Até aqui, perfeito. Contudo, um olhar jurídico minucioso leva-nos a questionar: essas questões têm a ver com o processo a ser julgado? O mero inadimplemento do tributo – situação que até então não era considerada criminosa – tem a ver com a crise fiscal do país? A inadimplência fiscal – diferente da sonegação – pagará pelos erros advindos do pacto federativo que distribui mal a verba da União? Será ela a responsável pelas incoerências das normas fiscais e das políticas públicas econômicas? Será o Direito Penal a ferramenta correta para consertar todos esses erros? E é ao Poder Judiciário que cabe essa decisão? Ao nosso ver, trata-se de uma anomalia institucional.
Conforme a separação de poderes idealizada por Montesquieu, não cabe ao Judiciário o papel de resolutor de questões políticas. Também não se pode deixar de destacar o que reputamos ser outro equívoco.
O crime fiscal objeto do processo analisado (art. 2º, II, da Lei n. 8.137/90) seria, de acordo com a própria decisão, “marginalmente denominado de apropriação indébita tributária”. E por marginalmente, leia-se, não pela própria lei. A despeito da não previsão legal, o STJ utiliza de tal alcunha “marginal” para comparar o crime em questão com outro de todo diverso que é o de apropriação indébita (art. 168, do Código Penal) – e que nada tem a ver com a ordem tributária. A decisão, ao que nos parece, extrapola os limites do julgador por meio de elegantes, mas equivocados argumentos. Reputamos perigoso o fato de que, por meio dessa decisão, as empresas – também essenciais para a economia e para a política nacional – terão seus sócios perseguidos pela máquina punitiva do Estado caso não paguem, por mera inadimplência, os tributos aos cofres públicos no prazo legal. Como bem dizia o professor Miguel Reale, o Direito é uma ilha de problemas, cercada por oceano de mistérios, sendo papel da dialética e da crítica construtiva recolocar na calmaria os mares tão revoltos em que vivemos. Eis uma tentativa.

* Advogados

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