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Caos automotivo: em meio à crise, montadoras massacram concessionárias

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Em momentos de profunda instabilidade econômica, agravada pela insegurança político-governamental, muitos setores comerciais estão com seus rendimentos e desempenhos de mercado abalados. Em muitos casos, se verifica uma retração de um determinado segmento empresarial, com o fechamento de parcela dos estabelecimentos comerciais.

Contudo, o que se testemunha no mercado automotivo não é uma simples crise econômica, mas sim um cenário catastrófico. O mercado automotivo parece absolutamente lucrativo, com propagandas milionárias em horários nobres da TV, investimentos faraônicos, plantas de produções de última geração e empresas multinacionais enviando constantes remessas de bilhões de dólares de lucro para suas matrizes, mas infelizmente esse é apenas um lado da moeda.

Esse lado é formado pelas montadoras – empresas multinacionais com lucros bilionários – que gozam de inúmeros e “inenarráveis” incentivos governamentais, tais como isenções de impostos e incentivos para investimentos, para explorar mão-de-obra barata e vender seus automóveis a preços astronômicos em um dos maiores mercados consumidores do mundo (Brasil era o 4º maior mercado automotivo do mundo até 2014).

Já o outro lado da moeda é formado pelas concessionárias – Empresas em geral de pequeno e médio porte – que são “obrigadas” a investir valores incompatíveis com a realidade atual para representar as montadoras, bem como a seguir padrões rígidos de desempenho de venda e qualidade, sob pena de terem seus contratos de concessão comercial automotiva rescindidos pelas montadoras.

Em síntese, as concessionárias investem milhões de reais, constroem unidades de atendimento no padrão imposto pelas montadoras, contratam e treinam milhares de funcionários, tudo com o único e exclusivo objetivo de representar uma determinada montadora, isto é, de garantir a manutenção da “parceria comercial” estabelecida entre concedentes (montadoras) e concessionários.

Regulamentada pela Lei Federal nº 6.729/79 (“Lei Renato Ferrari”), a relação entre concedentes (montadoras) e concessionários sempre foi marcada pela desigualdade. Tanto é que justificou a edição de uma lei especial para o setor, a qual, apesar da tentativa, não conseguiu equilibrar, na prática, uma relação absolutamente peculiar e desbalanceada, em que uma das partes abusa constantemente de seu poderio econômico. 

Mas o que acontece quando o mercado não corresponde? Quando o país entra em uma crise econômica? Quando as metas e margens de vendas “impostas” pelas montadoras são infactíveis, e as concessionárias começam a apresentar (assim como todos os setores do país) uma dificuldade financeira acentuada?

Na realidade, as montadoras criam expectativas e exigem investimentos exacerbados por parte dos concessionários como condição para a manutenção de um contrato de “parceria comercial”. Ocorre que nem sempre o mercado vai corresponder às expectativas apresentadas pelas montadoras, ou ainda, nem sempre as montadoras possuem condições de fomentar as próprias expectativas que teoricamente justificariam e suportariam os investimentos astronômicos realizados pelas concessionárias, de modo que, após o investimento realizado, as concessionárias ingressam em uma profunda crise financeira, uma vez que o investimento exigido pela montadora é flagrantemente exacerbado e indevido.

Contrariando o bom senso empresarial comum, em meio à crise que avassala a economia brasileira, as montadoras se recusam a repassar uma parte maior do lucro dos veículos vendidos, e ainda continuam a aumentar os preços de tabela destes, de modo que os concessionários têm que se dilacerar diariamente para conseguir vender seus estoques de veículos, restando ao final, é claro, uma margem ínfima para a concessionária.

Ademais, após perceber que uma determinada concessionária não apresenta mais condições de investir demasiadamente, ou ainda que uma concessionária apresenta um certo grau de instabilidade financeira, ocasionada, diga-se de passagem, pela própria montadora devido a sua conduta oportunista, inicia-se então uma fase de “confecção de dossiê”, em que a montadora planejadamente começa a introduzir diversos recursos jurídicos com o intuito de deturpar a realidade e “fundamentar” uma futura rescisão contratual.

Neste cenário, há uma verdadeira chacina empresarial: As montadoras, multinacionais que recebem inúmeros incentivos governamentais, estão simplesmente descartando seus “parceiros comerciais” com alguma debilidade financeira, leia-se concessionárias, ignorando todo o histórico de relacionamento, os milhões de reais investidos pelas concessionárias, seus funcionários, e uma suposta “parceria comercial” existente.

Como se não bastasse, para “driblar” a indenização prevista na Lei nº 6.729/79, as montadoras se utilizam de artifícios absolutamente formais, como por exemplo metas de vendas não atingidas e cotas de compra de peças não exercidas, para atribuir a “culpa” da rescisão contratual às concessionárias, sendo certo que na grande maioria dos casos tais metas/cotas são estipuladas pelas Montadoras de maneira unilateral, e “aprovadas” posteriormente por meio do uso do poder econômico destas.

Há casos, ainda, em que algumas montadoras atuam com o deliberado intuito de prejudicar uma determinada concessionária, para tirá-la de fato do mercado, infringindo flagrantemente as regras básicas de parceria comercial, como por exemplo informando aos clientes que uma determinada concessionária não está operando, ou direcionando os clientes à outras concessionárias vizinhas.

Diante da queda brusca de mercado em conjunto com o quadro supra explicitado, as concessionárias não conseguem atingir as metas unilaterais estipuladas, bem como apresentam uma grave dificuldade financeira, de modo que as montadoras se utilizam dessas supostas “faltas contratuais” (muitas vezes geradas/ocasionadas pelas próprias Montadoras) para descredenciar os concessionários sem o pagamento de qualquer indenização pelos investimentos milionários realizados previamente. Um flagrante abuso de poder econômico e deslealdade comercial.

Apenas para ilustrar a gravidade da situação, de acordo com a FENABRAVE, entidade que representa as concessionárias de veículos, apenas em 2015 cerca de 1.000 concessionárias fecharam as portas. Para o ano de 2016, estima-se que mais 600 concessionárias fecharão as portas, totalizando o número assustador de 1.600 concessionárias fechadas.

Demonstra-se importante frisar que, com o fechamento de uma concessionária, centenas de empregos são perdidos, sendo certo, ainda, que a geração de impostos para a União, Estados e Municípios é encerrada.

Em absoluto contraste com o evidenciado, as montadoras continuam a auferir lucros estratosféricos no Brasil, uma vez que a combinação de exploração da classe empresarial brasileira (concessionários), exploração de incentivos governamentais brasileiros, exploração de nossa mão-de-obra barata, e exploração de nossos consumidores por meio da venda de produtos a preços elevados, garantem ao mercado brasileiro a posição de um dos mais rentáveis do mundo para as Montadoras, sendo certo que algumas Montadoras atribuem ao mercado brasileiro uma posição de suporte e financiamento para suas operações internacionais.

Evidente que, em meio ao caos vivenciado no setor, as demandas judiciais entre concedentes e concessionários aumentaram exponencialmente. O Poder Judiciário vem atuando de maneira incisiva nesta questão, tendo como um dos maiores exemplos um caso recente entre uma concessionária Nissan, do interior do Estado do Rio de Janeiro – RJ, e a Nissan do Brasil (Montadora). Neste caso específico, a concessionária conseguiu uma liminar suspendendo a rescisão contratual unilateral realizada pela Nissan do Brasil, bem como obrigando a retratada Montadora a fornecer peças e veículos à concessionária, de modo a evitar qualquer embargo comercial, determinando, ainda, que a Nissan do Brasil se abstenha de nomear qualquer outra concessionária na área da concessionária inicial. Vejamos um trecho da decisão emblemática:

Pelo exposto, DEFIRO PARCIALMENTE A LIMINAR pleiteada para determinar: 1) A suspensão da rescisão contratual unilateral realizada pela Nissan do Brasil, em relação aos contratos de concessões firmados com a autora (Concessão Volta Redonda/RJ e Concessão São José dos Campos/SP), até que seja julgado o mérito da ação principal declaratória e indenizatória a ser proposta pela parte autora, dentro do prazo legal estipulado sob pena de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais); 2) Que a Nissan do Brasil abstenha-­se de nomear qualquer concessionárias nas áreas objeto de contrato entre a autora e a primeira ré, quais sejam: Volta Redonda/RJ e São José dos Campos/SP sob pena de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais); 3) Que a Nissan do Brasil forneça, peças e veículos à parte autora, consoante o firmado nos contratos de concesso?es, mediante pagamento à vista, evitando-­se qualquer tipo de retaliação comercial.

Cumpre destacar que a Decisão transcrita acima foi confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em julgamento monocrático recente, em Dezembro de 2015.

Procurado pela equipe do JB, o advogado do caso exposto acima, Dr. Fernando Mancilha Salomão, do escritório Navarro, Botelho, Nahon&Kloh Advogados, afirmou que “A brilhante decisão proferida pelo MM. Juiz a quo, sabiamente confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, ratifica a necessidade de que o Poder Judiciário aprecie casos semelhantes ao dos autos, de modo a conceder a tutela jurisdicional para coibir práticas comerciais absolutamente inadequadas e desleais, as quais, infelizmente, vêm se tornando cada vez mais frequentes na relação desempenhada entre concedentes e concessionários”.

O advogado ainda afirmou que “há provas contundentes juntadas aos autos com o condão de demonstrar que a Nissan do Brasil praticou gritantes ilicitudes no decorrer da relação comercial com a concessionária Autora da demanda,tais como informar aos próprios clientes que a retratada concessionária não estava autorizada a vender automóveis Nissan. Neste diapasão, a decisão liminar evitou um dano irreparável ou de difícil reparação ainda maior à concessionária e seus funcionários, uma vez que possibilitou a esta continuar desempenhando suas atividades normalmente, até que o Poder Judiciário aprecie as peculiaridades e o mérito da demanda principal.”

Por fim, o advogado especialista na área, Dr. Fernando Mancilha Salomão, alertou que “as Concedentes são empresas multinacionais de grande porte, assessoradas por diversos centros jurídicos nacionais e internacionais. Todos os atos comerciais e contratuais destas empresas são planejados e devidamente assessorados, de modo que as concessionárias – constituídas por empresas familiares, em sua maioria -  devem ser constantemente orientadas por um advogado competente, durante toda a vigência da relação contratual entre as partes, com o intuito de possibilitar que as concessionárias se defendam das diversas estratégias ofensivas apresentadas pelas Concedentes.”

Resta-nos apenas questionar se os Poderes Legislativo e Executivo tomarão alguma posição para regular e regulamentar um setor absolutamente caótico na economia brasileira, o qual representa grande parcela dos investimentos, geração de empregos e impostos na economia, ou se deixarão as milhares de concessionárias fechadas, os empregos e a geração de riquezas perdidas, se resolverem em “perdas e danos”.