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A construção da informação em um ambiente disruptivo 

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A imagem de uma seta apontada para o leste é utilizada com frequência como símbolo de progresso. Ocorre que, de certa forma, esta visão quase cega de um porvir glorioso, decorrente dos avanços da tecnologia, mascara e frustra as inquietudes. Leva à inação, como a que vemos quanto à questão ambiental, ao colapso climático, às demandas sociais e ao combate às desigualdades. 

Na realidade de 2018, esse mecanismo é potencializado por outras tendências contemporâneas. O aparato quase fundamentalista de determinadas seitas, por exemplo, tem efeitos anestésicos sobre o pensamento crítico e combativo. Já a internet, com sua ampla e feroz multiplicidade de atores, trouxe um elemento anárquico ao processo. É uma ferramenta poderosa para ações de iconoclastas que derrubam convenções e autoridades estabelecidas, mas são incapaz de colocar algo construtivo no lugar. 

Boxell, Gentzkow e Shapiro realizaram uma pesquisa intitulada “Is the Internet Causing Political Polarization? Evidence from Demographics” (https://www.nber.org/ papers/w23258). Analisaram o aumento da polarização na política norte-americana ao longo das últimas cinco décadas e constataram que, no período recente, as mídias sociais de fato contribuíram para criar uma espécie de estratifi cação de eleitores. 

O efeito das informações que circulam nesse meio, segundo a pesquisa, é maior em alguns grupos, especialmente jovens sem formação universitária, idosos, segmentos da população com tendência a radicalismo religioso e trabalhadores menos qualifi cados. Também foi notado o efeito na criação de crenças e na polarização dogmática. Os integrantes desses grupos têm em comum o costume quase que exclusivo de acessar as mídias sociais como reforço de suas crenças e exacerbação dos posicionamentos ideológicos. O efeito prático e o resultado de tal constatação podem ser vistos pela eleição de Donald Trump em 2016.  

Os fenômenos do culto aos fatos alternativos e da propagação de notícias falsas é mais um sintoma desse contexto, ajudando a agravar o quadro geral do doente, que padece também de uma crescente desigualdade socioeconômica e de enormes desafi os em campos tão diversos quanto segurança pública, educação, emprego e saúde pública. Não somente implicam na incapacidade do ser humano em discernir sobre a sua própria existência, como, na prática, equivalem a um vírus, sendo o hospedeiro e agente de contaminação, pois carente de doses maciças de “fatos e eventos alternativos”, notícias falsas que confi rmem a valoração de suas escolhas.

Robôs e governos

Um dos maiores problemas das notícias falsas é que elas são majoritariamente difundidas nas redes sociais por perfi s igualmente falsos, controlados por robôs. As estimativas são de que cerca de 15% dos perfi s do Twitter são falsos. No Facebook, os cálculos são de aproximadamente 10% de perfi s falsos ou duplicados. 

Isso explica a recente preocupação da empresa criada por Mark Zuckerberg em frear a disseminação de notícias em geral, e não apenas as falsas cujo controle tem se mostrado falho. Na verdade, o que o Facebook tentou ao mostrar que pode abrir seus algoritmos para os usuários foi neutralizar um movimento que é crescente entre analistas e governos. 

Leis como a )instituída recentemente pelo governo alemão (Netzwerkdurchsetzungsgesetz, apelidade de NetzDG) obrigam as mídias sociais a detectar e remover os chamados discursos de ódio. Já a Comunidade Europeia criou um site contra fake news e tem uma força-tarefa para estudar e eventualmente regulamentar o assunto. 

Mesmo entre os analistas da área de tecnologia, é pequena a resistência a esse tipo de iniciativa. Em artigo recente, o especialista em ética digital da consultoria Gartner Group, Frank Buytendijk, defendeu o papel dos governos na governança das redes sociais. Segundo ele, é preciso ter certeza de que os objetivos comerciais e da sociedade não são confl itantes.

Jornalismo para quê

O grande dilema da atividade jornalística hoje é reconstruir o espaço para a verdade em um ambiente contaminado por um vírus que compromete o próprio processo democrático. O jornalismo responsável, papel que este JB desempenhou por mais de um século, é hoje, mais do que nunca, uma espécie de vacina apta a extirpar a epidemia de que falamos. 

Esses são os princípios e compromissos que vão nortear esta coluna. De domingo a sexta-feira, buscaremos entender e tratar os dilemas econômicos e sociais do Brasil com um olhar diferente, privilegiando o pensamento econômico contemporêneo, mas sem perder a perspectiva do passado, que ainda nos cobra um preço tão alto, e do futuro, que apresenta desafios tão diversos. 

Descon?ança digital

Para a consultoria Gartner, uma das maiores do mundo na área de tecnologia, apesar do desenvolvimento dos instrumentos de Inteligência Artifi cial-IA, a difi culdade de detecção de notícias falsas será crescente. Com isso, até 2020, deve aumentar consideravelmente a desconfi ança digital. Na verdade, muitos dos instrumentos de IA estarão direcionados para produzir realidades falsas em formatos tão diversos como fotos, vídeos e documentos.

A previsão está no relatório da consultoria que lista as principais tendências para a área de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) para 2018 e os anos seguintes. Na avaliação da consultoria, até 2022, a maioria das pessoas nas economias maduras irá consumir mais notícias falsas do que informação verdadeira. 

Colaborou Renata Batista