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Quem reina e quem governa?

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Nas democracias, os resultados eleitorais dependem do desempenho econômico dos governantes. Nessa fórmula, o desempenho econômico é uma variável dependente da política, especialmente, mas não só, da política econômica, que se apresenta como variável independente. Outras dimensões da política, além das decisões econômicas, podem também prejudicar interesses dos agentes econômicos e a própria economia. No Brasil atual, vozes de várias ideologias têm dito que a crise política atrapalha a recuperação da economia. Mas nenhuma voz ignora a supremacia do ideário ultraliberal na agenda pública de mudanças.

Na medida em que a política econômica demandada pelos seus mais poderosos demandantes, que, cada vez mais, não são os eleitores, mas os investidores, não apenas impacta com êxito sobre o regime quanto é impopular, a democracia passa a ser colocada em xeque, seja pelo deslocamento da soberania popular para a soberania do capital, seja pela inadequação do governo do povo ao cálculo dos interesses dos investidores desterritorializados. De direito, os Estados são nacionais, de fato, muitos deles, cada vez mais se deixam controlar por um soberano que não vota apenas com cédulas eleitorais, mas também com recursos econômicos, inclusive aplicados em poderosas corporações da comunicação de massa.

Desequilibrando-se a relação de forças entre a soberania do capital e a soberania popular, por meio de um processo que favorece a primeira, a convivência entre capitalismo e democracia só será conciliável se os investidores colonizarem o regime do sufrágio universal, ou seja, se eles lograrem subordinar a política competitiva e as decisões do Estado aos seus interesses. Não alcançando tal feito, abrem-se vários dissensos entre capitalismo e democracia, como a rejeição dos agentes do capital às decisões do Estado, fuga de capitais, pé no freio dos investimentos, terrorismo econômico midiático e dos políticos conversadores, aumento das pressões sobre os governos etc. Nessa configuração, a equação do poder emerge invertida: a variável independente passa a ser a economia, não exatamente o desempenho econômico, mas os interesses econômicos, ao passo que a política, incluindo o tipo de regime, torna-se a variável dependente. Exemplo atual: as agências de classificação de risco de crédito têm sinalizado que a não aprovação da reforma da Previdência deverá implicar em rebaixamento ainda maior do Brasil nesse indicador. Para o mercado, o sistema político não tem outra escolha a não ser aprovar a reforma das aposentadorias e pensões. A decisão democrática está altamente constrangida à pré-formatação de conteúdo. O nível atual de colonização do Estado pelos interesses do capital financeirizado indica um paroxismo na tendência estrutural de captura do poder público pelo capitalismo.

Norberto Bobbio destaca que uma entre as tradições históricas que compõem o cabedal reflexivo da teoria democrática provém do pensamento político medieval. Nela, emergiu a distinção entre duas concepções distintas de soberania, a ascendente e a descendente. Na primeira, o poder soberano deriva do povo e estrutura-se no sistema representativo; na segunda, ele se origina e se espraia de cima para baixo, do príncipe aos súditos, transmite-se, por delegação, da realeza aos níveis inferiores da hierarquia social típica da sociedade estamental. Nessa perspectiva de análise, os processos em curso nas relações entre soberania e capitalismo vão no sentido da oligarquização do poder do povo, da elitização da democracia, da desdemocratização. No complexo e não linear processo histórico que opôs o parlamento à monarquia, uma frase do político e historiador Adolphe Thiers sintetiza a questão em jogo, na perspectiva dos liberais, então em ascensão contra o absolutismo e defensores da limitação do poder real: “O rei reina, mas não governa”. Hoje, no capitalismo ultraliberal, o andar da carruagem percorre e reforça uma estrada institucional que leva aonde “a democracia reina, mas não governa”. Enquanto no século XIX a questão burguesa era submeter o absolutismo ao laissez-faire, mantendo o rei, mas retirando-lhe o poder despótico de tributar e prejudicar a livre iniciativa, a invenção política do século XXI submete a democracia aos mercados desregulados, tornando-a, o quanto possível, tão inofensiva e útil à estabilidade quanto “Sua Majestade Real” nas monarquias liberais.

Esse processo ocorre, sob formas e intensidades variadas em países desenvolvidos e em desenvolvimento. Na Europa, sua principal característica é a redução substantiva de direitos trabalhistas e previdenciários, que atacam a democracia social inventada no Velho Mundo. Lá, o obra contrarreformista vem sendo feita por governos eleitos. Mas, no mesmo movimento conservador, o nacionalismo de direita se expande em vários países (França, Inglaterra, Áustria, Alemanha etc). Trump veste uma ideologia que pode ser chamada de nacional-liberalismo. No caso do Brasil, enquanto em 1964 a democracia foi banida por um golpe militar, a retirada de direitos em curso, impedida de lançar mão de força bruta, recorre ao golpe institucional, uma subversão da soberania popular que tenta se passar por legal.

Na história do pensamento político é clássica também a distinção entre governo dos homens e governo das leis. Na crítica ao absolutismo por direito divino, por exemplo, expressão ímpar do governo dos homens, o poder político foi racionalizado como derivado do contrato social, que supera o estado de natureza para, não obstante, garantir os direitos naturais à vida e à propriedade, por meio de um governo civil. A supremacia dos interesses particularistas do grande capital sobre o Estado coloca em questão a efetividade do governo das leis, uma vez que um grupo desequilibra, como nunca, a dinâmica política.

A guinada ultraliberal e conservadora em curso impregnou o conjunto das instituições do Estado, inclusive o Judiciário. O combate à corrupção tem sido feito por uma ideologia jurídica que penaliza as empresas nacionais e criminaliza a política econômica, ou seja, dois baluartes de um projeto nacional, ideia fora de moda para o dependentismo-neoliberal. Ademais, a austeridade tem castrado a recuperação da economia e a perspectiva de atração dos investimentos estrangeiros anda, como nunca, livre, leve e solta nas mentes do partido da ordem pós-golpe. Nesse ano, haverá eleições presidenciais. Mas haverá mesmo? Quem concorrerá? A marcação do julgamento de Lula pelo TRF-4 em tempo recorde é obra divina, dos homens predestinados ou das leis? A politização das instituições jurídicas e de controle, observada na Lava Jato, prosseguirá? Nós, cidadãos brasileiros, experimentaremos a continuidade da desdemocratização, e até mesmo seu aprofundamento, ou resgataremos o regime popular?

* Marcus Ianoni é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador do INCT-PPED, realizou estágio de pós-doutorado na Universidade de Oxford e estuda as relações entre Política e Economia