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Mercado manda, governo obedece, eleitores choram

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Como nunca antes na história do regime democrático derivado da Constituição de 1988, o divórcio entre representantes e representados esteve na potência máxima observada na conjuntura atual. O presidente Temer, não eleito, investido no poder institucional por meio altamente duvidoso e coalizado a uma base governista de um Congresso Nacional (Câmara dos Deputados à frente) altamente rejeitado pela opinião pública, aprova medidas ilegítimas e imorais, a mais recente tendo sido a recusa em autorizar o processo do chefe do Executivo Federal pelo STF, por crime de corrupção passiva, conforme denúncia da PGR.

Mas isso é apenas uma parte aparente da questão de fundo: o divórcio, na verdade, é abençoado não pelo papa ou pela CNBB, que têm tido posições progressistas sobre a política brasileira, e sim pelo grande capital, eufemisticamente chamado de mercado, para ocultar as diferenças de poder econômico entre os seus agentes e o mecanismo de acumulação que motiva sua existência. E não se trata meramente do grande capital nacional, mas, principalmente, do globalizado, o internacional. O mercado tão glorificado pela coalizão governista comporta-se como um verdadeiro dragão da maldade, não se importando nem com a corrupção e nem com a impopularidade e ilegitimidade de Temer. Na verdade, os grandes investidores usam e abusam do divórcio entre o governo e a nação, promovem-no, alimentam-no, para nutrirem-se das contrarreformas, como que cobrando, em troca da vista grossa em relação à corrupção, que as políticas de austeridade e desregulamentação nas áreas fiscal, econômica (desnacionalização produtiva, liberação da venda de terras para estrangeiros etc), trabalhista e previdenciária sejam consolidadas o quanto antes.

Em setembro de 2016, em reunião com investidores em Nova York, Temer afirmou que Dilma, na verdade, caiu por ter se recusado a apoiar as propostas ultraliberais formuladas no programa do PMDB denominado Uma Ponte para o Futuro, tornado público pela Fundação Ulysses Guimarães em outubro de 2015. Desde o golpe parlamentar contra Dilma Roussef, toda a preocupação do governo Temer e de seus apoiadores no Congresso Nacional tem sido sinalizar para os agentes do grande capital que as reformas por eles demandadas estão sendo implementadas pela coalizão governista e que isso resultará tanto na estabilidade política como no retorno dos investimentos necessários à recuperação da atividade econômica, encalhada em uma recessão já trienal, com 14 milhões de desempregados. Em maio último, Rodrigo Maia afirmou, diante de empresários internacionais reunidos no Fórum de Investimentos Brasil 2017, que a agenda da Câmara dos Deputados é a do mercado financeiro.

Esse discurso foi sendo ameaçado com a crise aberta pela revelação do conteúdo das gravações envolvendo o empresário Joesley Batista e o presidente Temer. Agora, com a vitória do governo na Câmara dos Deputados, à custa de muita compra de votos e da deterioração ainda maior da imagem pública do sistema político como um todo e das forças partidárias que sustentam o chefe do Executivo Federal, Henrique Meirelles, o ministro pró-mercado financeiro, volta a falar em estabilidade política e econômica. No entanto, apesar da queda da taxa Selic, os juros reais continuam altíssimos, inibindo os investimentos; a inflação caiu devido à recessão, mas a taxa de investimento (público e privado) foi para o abismo, de modo que não há o que comemorar. Por outro lado, o fracasso da política fiscal obriga a equipe econômica a rever as metas nessa área, inclusive devido aos gastos utilizados para lograr a vitória de Pirro na Câmara, embora o principal problema seja a baixa arrecadação, devido ao colapso do produto e da renda nacional.

Enquanto os representantes governistas (embora Temer não se inclua exatamente nessa categoria) curvam-se perante o grande capital que financia suas campanhas ou ao qual eles próprios pertencem, seja ideologicamente ou por serem também empresários e membros das oligarquias em seus estados, os eleitores, sobretudo a imensa maioria de pobres, assalariados e excluídos são lançados à selvageria feroz do mercado e da ausência de uma esfera pública defensora da cidadania, uma vez que o reino do Estado mínimo alça-se, como nunca, ao poder político, para livrar-se, nesse momento de crise internacional e nacional, das conquistas sociais que os governos petistas vinham implementando, mesmo que com limitações e insuficiências. Essas conquistam tinham custos fiscais e salariais. O mercado apoiou a deposição de Dilma para se livrar desses custos e instituir o Estado mínimo neoliberal. Apesar de tudo, de 2003 a 2014, a trajetória do Brasil era progressista. Já a lamentável opção pela deposição presidencial e pelas políticas ultraliberais enfiaram o país nas trevas da desesperança e do salve-se quem puder. E o pior é que a alternativa de rir para não chorar está totalmente descartada. De um lado, estão a democracia, o eleitorado, a moralidade, a justiça social, a nação, o desenvolvimento; de outro, o mercado, Temer e sua coalizão de pseudo-representantes do povo. A pátria do capital requer que o presidencialismo de coalizão seja um presidencialismo de colisão com o bem-estar dos cidadãos. Esse divórcio é estruturalmente instável. 

* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), realizou estágio de pós-doutorado na Universidade de Oxford e estuda as relações entre Política e Economia