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Diretas e Constituinte: a democracia e a nação

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Muitas vozes têm se referido à falência do sistema político brasileiro.  Cientistas sociais, jornalistas, políticos da situação e da oposição, magistrados, empresários, lideranças da sociedade civil, enfim, quase que em coro, sustentam essa avaliação. Esse sistema deriva da Constituição de 1988, que inseriu institucionalmente o Brasil no Estado Democrático de Direito, conceito de regime cuja efetividade objetiva de seu funcionamento depende do processo político real, das capacidades estatais e do comportamento dos atores, no sentido das elites não tornarem a lei letra morta e da sociedade demandar sua aplicação.

Na contramão desse conceito, observa-se um processo de desdemocratização, cuja maior expressão é a implementação de um programa de governo, por Temer, que não passou pelo aval dos eleitores, regressão também manifesta no aumento do autoritarismo do Estado; além disso, os direitos passam por uma série de ameaças e de efetivos retrocessos. A crise do sistema político ou do regime insere-se em uma crise da ordem constitucional, expressa na deslegitimação do conjunto do poder público, o que significa o divórcio entre a nação e o Estado. Cada vez mais, temos um Estado antinacional, e não meramente por abrir ainda mais as portas do país para o capital estrangeiro, mas também no sentido de que ele induz ao movimento regressivo da nação enquanto formação social e política, pela via da involução econômica e da desdemocratização.

A falência do sistema político pulula ao mesmo tempo em que se abandona a trajetória, perseguida principalmente por Lula e Dilma, de se incorporar nas organizações públicas e nas políticas públicas o espírito do estado de bem-estar social da Constituição de 1988. Cabe lembrar que, já no início dos anos 1990, desde o governo Collor, os neoliberais consideravam a Carta Magna ultrapassada, como não correspondente aos novos ventos que sopravam a partir dos países desenvolvidos, com os quais os setores não nacionalistas das elites econômicas e políticas se identificam.

O modo no mínimo duvidoso como Temer chegou à presidência da República e as novas políticas públicas ultraliberais ajudam a explicar, junto com a recessão brutal que as medidas aprovadas contribuíram para gerar, a crise de legitimidade do conjunto das instituições do Estado, nos Três Poderes. Se até recentemente o Executivo e o Legislativo federais eram os poderes mais rejeitados, a decisão do TSE de aprovar as contas da chapa Dilma-Temer explicitou a seletividade política do processo decisório do Judiciário, o que induz ao aumento da desconfiança em relação a esse poder da União. Nas comarcas e nas capitais, as cortes jurídicas já não gozam de prestígio, são desaprovadas, devido à ineficiência do sistema de justiça. Se, por um lado, a falência do sistema político, a crescente judicialização da política e o menosprezo oligárquico pela democracia e pelos direitos abriram caminho para o ativismo jurídico-policial, por outro, a crise de legitimidade das instituições do Estado não vai ser superada, pelo contrário, tende a ser agravada por esse protagonismo politizado do judiciário, seja o antipetista, o governista ou a salvacionista. Se combater a corrupção é fundamental, tão importante quanto é o modo de se fazê-lo. Várias vozes consideram inadequado combatê-la desrespeitando os direitos civis, assim como não se deveria domar a inflação destruindo a economia. Além disso, não cabe à burocracia togada ter um programa político, seja ele qual for, como vem ocorrendo na aliança salvacionista entre o Ministério Público, a Polícia Federal e setores do Judiciário.

Por outro lado, a situação política do presidente Temer continua insustentável, a tal ponto que, devido ao desgaste público representado pela continuidade do PSDB na base de apoio do governo, o próprio ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, líder tucano, passou a defender eleições diretas, pronunciando-se assim em nota: “A ordem vigente é legal e constitucional [...] mas não havendo aceitação generalizada de sua validade, ou há um gesto de grandeza por parte de quem legalmente detém o poder pedindo antecipação de eleições gerais, ou o poder se erode de tal forma que as ruas pedirão a ruptura da regra vigente exigindo antecipação do voto”.

Além das eleições diretas, está se abrindo no horizonte a necessidade de uma nova Assembléia Constituinte. A Constituição está sendo reescrita sem a soberania popular. Uma coisa é uma emenda constitucional, outra coisa é uma nova Carta Magna parida através de emendas. O pacto social de 1988, por exemplo, pilar da ordem constitucional até 2016, foi emendado para se limitar o gasto público conforme a variação da inflação. Isso equivale a remover a viga principal de um edifício, o que resulta no desabamento das demais e, portanto, de toda a obra. A atual proposta de reforma da Previdência, se aprovada, vai enterrar a Seguridade Social. Tais reformas reduzem o salário indireto e os direitos de aposentadoria, assim como o desemprego e a reforma trabalhista retiram o salário direto e outras garantias do mercado de contratação do trabalho assalariado. Não de pode esquecer que o Brasil é um dos países mais desiguais do planeta e o desenvolvimento demandado pela população é, obviamente, includente, e não excludente.

O sistema político brasileiro é um cadáver insepulto exalando o odor fétido de sua putrefação. O regime partidário virou uma indústria, com novas agremiações surgindo incontroladamente. Os partidos não representam eleitores, mas grupos de interesse sem programa para o país, cuja formação é estimulada pela existência de recursos institucionais com critérios de distribuição questionáveis, como o fundo partidário e o horário eleitoral gratuito. Não obstante, os parlamentares da coalizão de governo, na Câmara e no Senado, têm aprovado mudanças de profundo impacto, sob o aplauso dos grandes capitalistas que os financiaram.  E fazem-no ao mesmo tempo em que, regidos pelo desgastado presidente da República, buscam se salvar das investigações e processos em que estão envolvidos no âmbito da Lava Jato.

A questão da democracia está no centro da crise nacional. Nesse contexto, há duas tarefas democráticas nos horizontes imediato e mediato, respectivamente, a realização de eleições diretas e de uma nova Assembleia Constituinte. Ambas são polêmicas e de realização difícil, mas tocam no essencial, a reconstrução da ordem democrática. A reforma política não avança, assim como a reforma econômica dos meios de comunicação e a reforma tributária. A soberania popular é a via ético-política de resgate da legitimidade perdida capaz de tirar a democracia e o país do caos atual. 

* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), realizou estágio de pós-doutorado na Universidade de Oxford e estuda as relações entre Política e Economia