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Plano Temer de Estado mínimo e mercado máximo

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Nunca antes na história do Brasil, de 2003 para cá, mercado e democracia se desencontraram tanto como agora, após a posse do governo Temer, não eleito, resultante de um golpe contra o Estado Democrático de Direito, tese cuja pertinência os áudios de Sérgio Machado ajudam ainda mais a sustentar. Enquanto nos dois mandatos de Lula e no primeiro de Dilma, apesar de alguns erros cometidos, as políticas públicas avançaram significativamente na dificílima perspectiva, devido à globalização, de compatibilizar virtuosamente mercado e democracia, o tempo histórico obscuro e intensamente conservador em curso, que a coalizão golpista-neoliberal está determinada a descortinar ainda mais, usando a regressão democrática como meio, aponta para o Estado mínimo, por um lado, e capitalismo selvagem, por outro.

A coalizão do golpe no Congresso Nacional aprovou a toque de caixa o aumento da previsão de déficit primário de 2016, que era de até R$ 96,6 bilhões, passando agora para R$ 170,5 bilhões. Quando, em março, o ex-ministro Nelson Barbosa solicitou a ampliação do montante de déficit que poderia ocorrer, o bombardeio midiático afirmou que o governo queria “aval para rombo fiscal”. Agora, com a autorização para um déficit até 76,5% maior, a grande mídia, pertencente ao estado-maior da coalizão golpista, se refere à nova meta fiscal positivamente, como sendo a primeira vitória do governo Temer para evitar a paralisia do país e alavancar a recuperação da economia. Além do oportunismo casuísta no trato da política orçamentária, esse posicionamento é um endosso ao papel anticíclico do Estado, negado à presidente Dilma, mas ora permitido ao governo interino. A professora de economia da USP, Laura Carvalho, formulou também uma explicação política: “O déficit maior permite um acerto de contas com todos os apoiadores do golpe, os ministros recebem o ministério com orçamento maior, os impostos não serão aumentados, o Judiciário garante seu reajuste”.

De qualquer modo, no horizonte não está o keynesianismo, e sim o Estado mínimo, conforme mostram as propostas do Plano Temer, formuladas segundo o entendimento neoliberal de como deve ser o mecanismo de redução da dívida pública. Enquanto a política monetária ortodoxa implementa recorrentemente, desde o início do Plano Real, a taxa básica de juros mais alta do mundo (há dez meses está em 14,25%), que resulta em volumosa transferência de renda para uma ínfima minoria de grandes rentistas credores da dívida pública, a política de austeridade fiscal visa não apenas cortar ao extremo recursos do orçamento da União destinados às políticas sociais, direitos trabalhistas e a um modelo de desenvolvimento alternativo ao parasitismo da financeirização, mas também bloquear estruturalmente a mobilização dessas verbas nos próximos anos. Nem uma palavra é dita sobre a busca da justiça tributária, via tributação progressiva, como caminho de reforma fiscal e muito menos sobre a política perversa de juros altos.

Segundo o Tesouro Nacional (STN), foram pagos R$ 367,6 bilhões em juros da dívida pública em 2015. Generosa fatia desse valor é proveniente de captura bilionária das políticas monetária e fiscal. Há duas explicações da ideologia econômica conservadora para o assalto dos ricos ao erário público: o Banco Central (BCB) implementa elevadas taxas de juros para combater a inflação e a dívida é custosa pela falta de credibilidade do governo. As mesmas raposas que formulam alto e bom som esse dilema do ovo e da galinha tomam conta do galinheiro. Tira-se o sangue do Estado perversamente e quando, devido aos seus compromissos democráticos e nacionais, ele ousa honrar elementares ações de promoção de igualdade social e desenvolvimento, é acusado de cometer excessos populistas que comprometem sua vitalidade. Para disfarçar seu caráter capitalista selvagem, os críticos neoliberais dizem que o populismo é ainda mais destinado ao empresariado nacional, com os subsídios do BNDES, por exemplo, do que às famílias beneficiadas com políticas de transferência de renda mediante condicionalidades. Mas citarei apenas um exemplo entre tantos: através das gerências de relacionamento com investidores do BCB e do STN as forças da financeirização influenciam efetivamente a política macroeconômica. A proposta de formalização da autonomia do BCB visa aprofundar a garantia institucional da captura já existente. O elitismo da macroeconomia neoliberal é muitíssimo mais nocivo às finanças públicas do que o suposto “populismo” das políticas social-desenvolvimentistas. O elitismo provou que leva à mudança social regressiva, ao passo que o “populismo”, de 2003 a 2014, promoveu inúmeros avanços progressivos no modelo de capitalismo brasileiro.

O Estado só merece a credibilidade dos rentistas se, doando absurdamente o sangue nosso de cada dia aos Dráculas do rentismo, mantiver sempre seu corpo fiscal em condições de nutrir a captura privatista, propiciando assim confiança aos credores. Essa exploração só será possível se o Poder Público se tornar um Robin Hood às avessas, tirando dos pobres para dar aos ricos, residentes ou não no país. Isso explica o Plano Temer e a necessidade de refrear a revolução democrática. A insuspeita The Economist, em edição recente, afirmou que o impeachment foi autorizado com base no "jeitinho" brasileiro. Só por meio de um golpe de centro-direita um programa impopular e rejeitado em quatro eleições presidenciais pode ser imposto. Por pressões dos rentistas, o governo Dilma vinha implementando, desde o início de 2015, políticas de austeridade fiscal e monetária, mas as forças que induziram ao golpe e o dirigiram precisavam tirá-la da presidência para dar pleno acesso à retomada do programa neoliberal e antinacionalista no país e tentar salvar a pele de vários políticos de centro e direita envolvidos na Operação Lava Jato e outras irregularidades. Os agentes do mercado financeiro estão esperançosos com o governo interino.

Entre as propostas do Plano Temer, a mais polêmica é o estabelecimento de um teto anual para o crescimento dos gastos públicos não financeiros (pessoal, custeio, investimentos e programas sociais), baseado na inflação do ano anterior. Essa medida, uma mudança estrutural de grande envergadura, depende de emenda constitucional, pois altera vinculações de receitas destinadas à seguridade social (saúde, previdência e assistência social), direitos trabalhistas e educação. O governo Temer quer reverter a trajetória de elevação dos gastos públicos acima da inflação e também em relação ao PIB. Segundo cálculo da Folha de S.Paulo, se o teto ora proposto tivesse vigorado em 2015, o gasto federal contabilizado de R$ 1,16 trilhão teria sido de R$ 600,7 bilhões. Aprovado o novo teto pelo Congresso, o que pode não ser fácil, os pobres e assalariados pagarão ainda mais do que hoje a conta do controle do Estado pelos investidores financeiros, ao perderem recursos para os direitos sociais e trabalhistas; ficará para a história a mobilidade social ascendente observada na Era Lula e os avanços na redução da desigualdade. Aliás, as tendências regressivas nesses fatores já estão em curso.

Ademais, o governo do “golpe para controlar o Estado”, quer que o BNDES liquide, em três anos, contratos no montante de R$ 100 bilhões que possui com o Tesouro. Além de comprimir a atividade produtiva, essa proposta é juridicamente polêmica, pois pode contrariar dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal sobre a relação entre a União e os bancos públicos. Outra proposta é a extinção do Fundo Soberano do Brasil (FSB), fundo de investimento criado em 2008, pela Lei 11.887, para servir de colchão de cobertura contra crises. Uma das medidas práticas é o resgate de R$ 2 bilhões em ações do Banco do Brasil (BB) em mãos do FSB, que seriam usados para resgatar títulos da dívida pública. A notícia provocou uma queda de 4% no valor das ações do BB na semana passada. Por fim, mas não menos importante, pretende-se proibir a criação e renovação de subsídios, reformar a previdência social, fixando a idade mínima para a aposentadoria de homens e mulheres, respectivamente 65 e 60 anos, e diminuir a presença da Petrobras na exploração das reservas de pré-sal, altamente cobiçadas pelas multinacionais do petróleo. Mas vêm mais medidas por aí, como a flexibilização da CLT e o aprofundamento de políticas privatizantes.

O governo Temer quer minimizar o Estado e maximizar o mercado. Isso significa minimizar a democracia e maximizar o controle da esfera política pelos interesses dos investidores financeiros. Significa aprofundar a transformação da política em apêndice do cálculo econômico do grande capital rentista e financeiro. O objetivo é retomar o modelo neoliberal de capitalismo, que falhou nos governos federais do PSDB e levou o mundo à crise de 2008. Esse modelo tem sido responsável por baixas taxas de crescimento, aumento da desigualdade, redução drástica das políticas de bem-estar social, inclusive na Suécia, instabilidade política, guerras e pela emersão das forças de direita, algumas delas com discursos nacionalistas neofascistas, como se observa em vários países da Europa.

Apesar de ser um direito democrático questionar erros na política econômica de Dilma, sobretudo o exagero nas desonerações e certo intervencionismo nos preços dos derivados de petróleo e no setor elétrico, o fato é que governar o capitalismo, sobretudo na atual crise internacional, não é fácil para progressistas ou conservadores. As medidas anticíclicas da presidente afastada visaram estimular a atividade econômica, manter o nível de emprego, controlar a inflação e preservar as políticas sociais. Muitos empresários contemplados com desonerações criticaram o elevado déficit nominal de 2014, que a renúncia fiscal ajudou a acumular.

Mas, ao invés do necessário ajuste nas contas públicas ter sido implementado por uma lógica pluriclassista e de maior teor nacional, através de uma estratégia gradualista, preocupada com o nível de produção e emprego, renda e bem-estar, a opção dos capitalistas e líderes políticos do golpe foi sabotar a governabilidade de Dilma, afastá-la casuisticamente e abrir o caminho para a política impiedosa de choque fiscal e recessivo, contra os trabalhadores.

O compromisso do mandato democrático tem uma dupla lógica, política (eleições) e econômica (o Estado e a sociedade dependem do capital). A aposta neoliberal em uma saída da crise pelo equacionamento desequilibrado da balança de forças entre democracia e mercado é econômica e eleitoralmente duvidosa, de alto risco à estabilidade política e social e muito custosa ao povo e à soberania nacional. 

* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador das relações entre Política e Economia e Visiting Researche Associate da Universidade de Oxford.