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Coalizões e política macroeconômica

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Segundo a PNAD Contínua, feita pelo IBGE, a taxa de desemprego do terceiro trimestre de 2015 foi de 8,9%. Em dezembro de 2014, esse indicador estava em 4,3%, ano em que o desemprego médio foi de 4,8%, o menor nível desde 2002. Previsões negativas, que oxalá não se confirmem, são de que a referida taxa alcançará 10% em 2016. Não se pretende aqui discutir as explicações do desemprego em geral e nem do existente no Brasil desde 2015. Partindo do pressuposto de que a política macroeconômica tem relação com variáveis reais, como crescimento, desenvolvimento e igualdade, esse artigo aborda a dificuldade que o projeto social-desenvolvimentista, implementado em Lula 1 e 2 e em Dilma 1, teve para constituir uma coalizão mais consistente, entre classes e frações, na referida área fundamental de ação técnico-política, para fazer frente ao modelo conservador, que foca na austeridade monetária e fiscal de um modo que tem sido altamente custoso, do ponto de vista social, e contraproducente em termos econômicos.

Em obra de 2006, denominada “Stability with growth: macroeconomics, liberalization and development” (Estabilidade com crescimento: macroeconomia, liberalização e desenvolvimento), Stiglitz et alli argumentam que “o objetivo da política econômica é maximizar o bem-estar societal de uma maneira equitativa e sustentável”. Ainda segundo essa obra, apesar de crescimento e estabilidade serem muito importantes para a sociedade, há sérias divergências entre os economistas sobre como alcançá-los e as decisões governamentais são escolhas políticas. O foco estreito na estabilidade de preços, perspectiva dos economistas que seguem as diretrizes do Consenso de Washington, tem sido implementado de uma maneira prejudicial ao desenvolvimento sustentável de longo prazo. A questão central é que a política econômica implica em trade-offs (situação em que há conflito de escolha, por exemplo: menos inflação e mais desemprego ou, inversamente, mais inflação e menos desemprego). Mas, como o título da referida obra propõe, pode-se buscar um equilíbrio entre estabilidade e crescimento. As políticas neoliberais têm desequilibrado essa equação em nome de uma visão restritiva de estabilidade, centrada extremamente na inflação e na austeridade fiscal. É a situação em que o Brasil ora se encontra.

Em 2002, devido a um ataque especulativo, o então candidato Lula publicou a “Carta ao povo brasileiro”, na qual se comprometia a manter o tripé de estruturação da política macroeconômica: metas de inflação, arrecadação de superávit primário e câmbio flutuante. Escrevendo em 2010, o hoje ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, distinguia, em relação à política macroeconômica dos governos Lula 1 e 2, o arranjo institucional do direcionamento. Segundo ele, o arranjo institucional da política macroeconômica foi mantido, mas o governo alterou o seu direcionamento, “dando mais importância ao combate à pobreza, à redução da desigualdade na distribuição de renda, e ao crescimento do emprego e dos salários nas decisões”.

Essa nova síntese entre arranjo institucional e direcionamento da política econômica implicou em um significativo avanço na sua capacidade de ser uma alavanca desenvolvimentista, embora não o suficiente para superar efetivamente os entraves da macroeconomia neoliberal ao crescimento e ao fortalecimento da industrialização brasileira. Ao longo dos dois mandatos de Lula, caíram a inflação, a taxa de juros e a dívida pública, enquanto a taxa de câmbio se apreciou.  Sua equipe econômica adotou uma estratégia gradualista de mudança na política macroeconômica, sobretudo a partir de 2006, quando Guido Mantega substituiu Antonio Palocci. A principal escolha governamental para compatibilizar inflação e crescimento foi perseguir o cumprimento da meta de inflação em um ritmo nem muito acelerado e nem muito lento.

Em tese, os mais interessados em uma macroeconomia desenvolvimentista são os setores vinculados ao capital produtivo e os trabalhadores. Desde a campanha eleitoral de 2002, essa aliança foi sendo, por um lado, objetivamente induzida e, por outro, politicamente costurada, ainda que com limitações, como será visto. A incapacidade das políticas neoliberais viabilizarem o cumprimento das promessas de crescimento e justiça social, que seus defensores nos governos FHC (1995-2002) haviam feito, foi deixando o empresariado industrial descontente.

Desde Lula 1, várias ações e pronunciamentos dos industriais focaram na crítica à política monetária, cujos juros altos sufocam duplamente o setor produtivo, tanto pelo encarecimento do crédito para pequenos empresários e consumidores – os grandes contam com o BNDES – quanto pelo aumento do endividamento público, que pressiona no sentido da elevação da carga tributária. Em 2005, Fiesp, CNI e CUT lançaram uma campanha pela ampliação do Conselho Monetário Nacional (CMN), cuja composição, desde o Plano Real, é altamente insulada, embora as instituições financeiras têm canais de contato com o Banco Central (BCB) no processo de implementação da política monetária, como se dá no caso da coleta de dados para a pesquisa Focus de expectativas de mercado. A demanda social-desenvolvimentista para ampliar a autoridade monetária chegou ao CDES (Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social) em março daquele ano. A proposta era que o CMN passasse a ter nove membros. Ao invés de apenas três componentes, os ministros da Fazenda e Planejamento e presidente do BCB, como é até hoje, contaria com os ministros do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e da Ciência e Tecnologia e com o presidente do BNDES, além de três representantes da sociedade civil, indicados pelo empresariado, trabalhadores e setor acadêmico.

Em maio daquele ano, o CDES aprovou a moção de apoio à ampliação do CMN e a enviou ao presidente Lula, mas a proposta não prosperou. Assim se referiu à questão, em 2008, o então presidente da CUT e membro do Conselhão, Arthur Henrique: "A ampliação do Conselho Monetário Nacional teve grande aceitação no conselho e achamos que passaria com facilidade. Não vi no conselho ninguém contra a idéia. Mas o governo não encaminhou". Esse parece ser um daqueles casos que levaram alguns críticos do método pluralista de investigação da influência dos grupos de interesse nas decisões políticas a se referirem à “dupla face do poder”, a explícita e a oculta. A hipótese aqui, a ser devidamente analisada, é que o setor financeiro, cuja força é tão grande que não precisa se expor publicamente para manifestar suas preferências, vetou a implementação da ampliação do CMN e a proposta, então, foi abandonada pelo governo Lula 1. Não nos esqueçamos, por exemplo, que o então presidente do BCB era Henrique Meirelles, homem de confiança do setor financeiro e, em 2005, Palocci ainda estava à frente da Fazenda.

Em maio de 2011, no início do governo Dilma 1, capital produtivo e trabalho assalariado tentaram novamente influenciar a política macroeconômica. Fiesp, CUT, Força Sindical, Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo realizaram conjuntamente o seminário “Brasil do diálogo, da produção e do emprego”. O evento contou com a participação dos ministros da Fazenda, Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e Ciência e Tecnologia, debateu a política macroeconômica e a política industrial e aprovou um documento intitulado “Acordo pela Produção e Emprego”, assinado conjuntamente pelas organizações promotoras. Em outubro, essa iniciativa desdobrou-se no “Movimento por um Brasil com juros baixos: mais empregos e maior produção”, que realizou uma passeata conjunta, promovida por Fiesp, Abimaq, CUT e Força Sindical, dirigida à sede do BCB, em São Paulo, para pressionar contra eventual alta da taxa Selic pela reunião do Copom, que ocorreria no dia seguinte a esse evento da coalizão social-desenvolvimentista. O BCB, que acabara de iniciar, em agosto daquele ano, aquilo que ficaria configurado como um ciclo inédito de redução da taxa básica de juros, baixou-a, então, de 12% para 11,5%. Após sucessivas quedas, em outubro de 2012, a Selic foi reduzida para 7,25%, patamar que foi mantido até a reunião do Copom de abril de 2013, quando foi majorada para 7,5% e, desde então, não parou de subir, estando hoje em 14,25%, sendo que os cívicos e populares banqueiros apostam que, nessa semana, ela será elevada em mais 0,5%.

Para compensar a elevação dos juros, Dilma estimulou a economia com desonerações tributárias, financiamentos do BNDES etc. O ciclo de alta da taxa Selic fez parte da derrubada da Nova Matriz Econômica, de Mantega e Dilma, pela coalizão neoliberal, liderada pelas instituições financeiras e grande mídia. Hoje, a persistente austeridade monetária une-se à austeridade fiscal, em plena conjuntura de recessão.

Ao que tudo indica, as instituições financeiras derrubaram tanto a proposta de ampliação do CMN quanto a tentativa de Dilma 1, implementada de agosto de 2011 a abril de 2013, de colocar os juros brasileiros, inclusive os spreads bancários, em um patamar civilizado.

De Lula para Dilma, o Conselhão teve seu peso reduzido, o que não ajudou na construção institucional da coalizão social-desenvolvimentista. Porém, como mencionado, o presidente Lula engavetou uma proposta que teve respaldo do empresariado industrial e do CDES e, talvez, se tivesse sido objeto de um debate público, poderia ter ganho mais adeptos. Dilma, por sua vez, tentou implementar, de modo voluntarista, sem a devida concertação política, medidas cujas consequências os próprios beneficiados, os empresários do setor produtivo, passaram depois a criticar, pulando para o barco da austeridade fiscal, desde que executada por meio de redução de despesas governamentais, e não por aumento dos impostos.

Por um lado, Lula teve apoio para reformar uma institucional-chave de formulação de política macroeconômica, tornando-a mais favorável ao crescimento, mas não aproveitou a oportunidade, nem mesmo submeteu a questão ao debate público, para politizar o debate. Se o líder petista foi prudente e cauteloso no gradualismo, foi também tímido na utilização dos recursos de poder que poderia ter mobilizado para a ação desenvolvimentista. Por outro, Dilma reduziu seu campo de apoio sociopolítico, ao mesmo tempo em que tentou avançar, com passos mais largos, por meio da Nova Matriz Econômica e das políticas anticíclicas.

Como teria sido a história se Lula tivesse sido mais ousado, com base no apoio que teve, em lançar a política macroeconômica no debate público e no Legislativo, por meio da proposta de ampliação do CMN, e se Dilma, por sua vez, fosse menos voluntarista, mais preocupada em fazer as devidas alianças para fortalecer sua convicção desenvolvimentista? Lição da história: a coalizão social-desenvolvimentista, no que diz respeito à política macroeconômica, careceu de um melhor equilíbrio entre liderança, organização dos aliados, ação e disputa política e ideológica direcionada a essa frente fundamental de alavancagem do crescimento com justiça social. Todos esses recursos não faltam à coalizão neoliberal, embora seu objetivo final seja outro, sendo ele sua maior fraqueza: concentrar renda e riqueza nas mãos dos ricos. 

* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador das relações entre Política e Economia e Visiting Researche Associate da Universidade de Oxford (Latin American Centre)