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O limite do quanto pior, melhor

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A decisão do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, de aceitar a tramitação de um dos pedidos de impeachment contra a presidente Dilma Roussef que tramitava na Casa é o auge de um conjunto de ações políticas capitaneadas pelas forças sociopolíticas e político-institucionais de oposição ao processo de transformação colocado em prática desde 2003, quando Lula tomou posse.  Mesmo parecendo mais provável que o impeachment não será aprovado, a sua admissibilidade, nascida com o vício de origem da chantagem de Cunha contra o PT e o governo, por não ter recebido apoio deles na Comissão de Ética da Câmara, que deverá sugerir ao plenário a cassação de seu mandato por quebra de decoro parlamentar, joga lenha na fogueira da crise brasileira.

Na metáfora do bebê e da água do banho, a corrupção é a água suja que as instituições democráticas estão jogando fora ou apurando e o bebê, a erradicação da miséria e diminuição da pobreza, internacionalmente aplaudida, a inclusão através do mercado de trabalho, como ocorreu até o final de 2014, o fortalecimento do mercado interno, o colchão de reservas internacionais para proteger a nação de crises cambiais e financeiras e assim por diante. Sob o pretexto de rejeitar a corrupção, que, indubitavelmente, deve ser rejeitada, embora toda ela, e não apenas a identificada no adversário político, o que está ocorrendo, na verdade, é a ofensiva dos interesses vinculados ao modelo de capitalismo neoliberal contra o social-desenvolvimentismo em construção no país até o ano passado.

As duas grandes frentes de ação da ofensiva neoliberal contra o modelo social-desenvolvimentista implementado, com importantes virtudes e limitações, desde 2003 são a política econômica de austeridade fiscal e monetária e a histeria política moralista e seletiva contra a corrupção. Na linha de frente da reação neoliberal está a grande mídia, o oligopólio que, mais do que nunca, tem se comportado como o principal partido político da coalizão oposicionista contra o PT e seu governo. Qualquer leitor minimamente informado sabe que a política da austeridade em curso foi imposta ao governo Dilma, desde o final das eleições de 2014, pelos interesses do capitalismo financeirizado, aos quais vinculam-se uma poderosa minoria de bilionários e milionários rentistas, bancos e outras instituições financeiras. Dilma foi eleita com um programa social-desenvolvimentista. Porém, como a grande burguesia possui mais poder de veto do que de voto, os investidores capitalistas vetaram a continuidade das políticas que estavam sendo implementadas e forçaram o governo Dilma 2 a fazer uma gestão econômica austericida, de restrição fiscal e monetária. Essa é a frente de política econômica da ofensiva da contrarreforma, tendo na vanguarda o partido da grande mídia, o poderoso porta-voz da república oligárquica que se deseja preservar através do arrocho no orçamento público e da recessão.

Na frente de política competitiva e institucional da ofensiva neoliberal e conservadora estão, além da grande mídia e setores das classes médias tradicionais, os partidos de oposição, a começar pelo PSDB, aliado do chantagista Eduardo Cunha, prestes a ter seu mandato cassado. O grande programa dessa frente é o combate seletivo à corrupção. Descontando os excessos não desprezíveis e pensando no aspecto positivo, por que motivo há apenas um juiz federal do perfil de Sérgio Moro no país, não à toa influenciado pelo tucanato paranaense, ao invés de centenas, todos combatendo a corrupção? Porém, como o combate à corrupção está sendo feito pelas instituições fortalecidas pelos governos petistas, os falsos moralistas se lançam no quanto pior melhor (não para o país, mas para eles), ou seja, no comportamento irresponsável de investir no caos político-administrativo, para usá-lo como argumento a favor do impeachment. Quando em editorial publicado em 13 de setembro, sob o título “Última chance”, a Folha de S. Paulo deu um ultimato a Dilma, em nome da austeridade, o que estava fazendo a não ser justificar o impeachment em nome do caos da produção, como pretenso meio de superação da crise econômica? “Serão imensas, escusado dizer, as resistências da sociedade a iniciativas desse tipo. O país, contudo, não tem escolha. A presidente Dilma Rousseff tampouco: não lhe restará, caso se dobre sob o peso da crise, senão abandonar suas responsabilidades presidenciais e, eventualmente, o cargo que ocupa.” Essas foram as exatas palavras finais do referido artigo no qual o jornal efetivamente dá sua opinião. Um ultimato, quase que dizendo o seguinte: “obedeça-me, corte sem dó as despesas públicas ou será deposta”. Enquanto isso, Eduardo Cunha e seus aliados no PMDB e na oposição se encarregavam de dificultar esse mesmo ajuste fiscal demandado por seus financiadores eleitorais. 

A divisão de trabalho operada pela frente neoliberal produz o quanto pior melhor, a derrubada da economia e a paralisia da política. Agora, com a admissibilidade do impeachment, os abutres da nação organizam sua cartada decisiva contra a ordem econômica, social e democrática. Alguns estão em cima do muro ou provavelmente debandando para o golpismo, como os aliados de Temer, defensor do projeto neoliberal da Fundação Ulysses Guimarães, do PMDB. Porém, observam-se reações importantes contra o golpe branco nas forças progressistas. Os governadores de Alagoas (PMDB), Bahia (PT), Ceará (PT), Maranhão (PC do B), Paraíba (PSB), Pernambuco (PSB), Piauí (PT), Rio Grande do Norte (PSD) e Sergipe (PMDB), ou seja, de todos os estados do Nordeste, assinaram conjuntamente uma nota pública contra o impeachment. PSOL, PDT e Rede Sustentabilidade posicionaram-se contra o golpe, assim como várias organizações da sociedade civil, entre elas OAB e CNBB. CUT, FUP, MST e MTST também estão na coalizão democrática. Nem todos querem fabricar politicamente, sem base jurídica, o impeachment para avançar na aposta do quanto pior, melhor. Pelo contrário, enquanto algumas forças querem a polarização política do país, a demanda da maioria do eleitorado é condizente com a vontade geral de Rousseau, tem conteúdo ético, visa um Brasil melhor, produtivo e menos desigual. Era essa a trajetória do social-desenvolvimentismo até 2014, mesmo que com falhas, sobretudo na produção industrial. 

* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador das relações entre Política e Economia e VisitingResearcherAssociate da Universidade de Oxford (Latin American Centre)