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(Não)deposição e/ou (anti)austeridade

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Max Weber, o brilhante sociólogo alemão, afirma o seguinte em sua obra máxima: “A essência de toda política […] é a luta, a conquista de aliados e de um séquito voluntário”. Weber também argumenta que a razão de ser da política é a luta pelo poder. ”Quem pratica política, reclama poder”. O objetivo de toda a associação política, como o Estado e os partidos modernos, é o poder. Essa análise weberiana da política cai como uma luva para a compreensão da corrente crise brasileira. Há uma disputa política em torno do poder de Estado no Brasil e, inevitavelmente, as partes envolvidas buscam formar alianças, coalizões para encaminhar suas aspirações. Nesse contexto, arriscar um mapeamento analítico dos interesses em disputa na conjuntura da crise brasileira, dos atores componentes das coalizões e de seus recursos de poder pode ser um exercício elucidativo, mesmo que sujeito a imprecisões, devido à complexidade do problema, entre elas e de tratar em bloco forças sociais e políticas que apresentam fragmentação.

Há dois grandes interesses em jogo estruturando as ações de coalizão, um político e outro de política econômica. O interesse político separa os favoráveis e os contrários à continuidade do mandato de Dilma, seja por impeachment ou renúncia. O interesse de política econômica divide as forças pró e contra a austeridade, cujas medidas mais recentes para equilibrar o orçamento de 2016 dependem de votação no Congresso Nacional. A crise aumenta tanto a autonomia relativa entre política e economia como também a fragmentação e o oportunismo. Há forças liberais contra a austeridade, ao passo que contingentes desenvolvimentistas votaram a favor de medidas do ajuste fiscal. Há parlamentares de partidos da base aliada que estão na oposição etc. Para parte significativa dos atores dos dois lados, o interesse político está sendo mais relevante. Assim, os grupos organizados dividem-se e embaralham-se em relação à agenda em disputa, delimitando quatro tendências de coalizão, que envolvem as esferas político-institucional e sociopolítica. A tabela abaixo arrisca um mapeamento. O único ator não organizado nela incluído é a opinião pública.

Duas iniciativas recentes envolvendo forças do Congresso Nacional expressam com clareza as coalizões, na sua expressão político-institucional, no que diz respeito ao interesse político acima definido: o “Movimento Parlamentar Pró-Impeachment” e a “Declaração em Defesa da Democracia e do Mandato Popular”. Os pró-impeachment ou renúncia estão relativamente fortes, seja pela base parlamentar que possuem, pelo apoio de atores-chave nas instituições que investigam a corrupção e outras irregularidades (Polícia Federal, Ministério Público, Judiciário e TCU)e na grande mídia, poderosa força oposicionista, assim como pelo respaldo na opinião pública e nos movimentos de protesto das ruas, liderados por atores de direita-liberal da sociedade civil. Na tabela, estão nas posições 1 e 3.

A exigência de maioria qualificada de dois terços dos votos dos deputados federais para aprovar a abertura do processo de impeachment, número superior aos três quintos necessários para a aprovação de emendas constitucionais, torna a empreitada da oposição difícil, mas, diante da queda livre da capacidade de governabilidade de Dilma, tudo é possível, sobretudo se o PMDB formalmente romper com o governo. Até mesmo a possibilidade de renúncia parece começar a ganhar corpo.

Cabe uma observação conceitual sobre a dimensão política da crise. Avalio que a crise política está implicando em uma crise político-institucional. Recorro à teoria estrutural-funcionalista das ciências sociais, que conceitua instituições como estruturas e funções. Não há no país uma crise institucional no sentido de ameaça de ruptura da ordem constitucional, mas em termos de que a função presidencial está em profunda crise de legitimidade, impactando intensamente na governabilidade. O Executivo perdeu poder de agenda sobre o Legislativo e a sociedade reprova o governo Dilma, por implementar um programa oposto ao eleitoral e pelo envolvimento de forças governistas com a corrupção, tema que a grande mídia aborda com nítido partidarismo oposicionista.

Os que defendem o mandato de Dilma têm aliados sociopolíticos fortes: o grande capital de vários setores – que precisa de uma ordem política não prejudicial aos negócios, sendo o cenário de impeachment arriscado –, e a CUT e os movimentos sociais organizados, em geral, baluartes dos partidos de esquerda no governo, cujas lideranças e bases votaram em Dilma e rejeitam o golpe branco. Nesse lado legalista, por assim dizer, há uma divisão entre defensores e opositores da austeridade. Entre os demandantes do ajuste fiscal que se pronunciaram sobre o recente pacote referente ao orçamento de 2016, banqueiros aprovaram a volta da CPMF e industriais criticaram. Se a situação política piorar, seja devido à precária governabilidade do ajuste fiscal, ou por uma eventual rejeição das contas de Dilma pelo Congresso, o empresariado aderirá à coalizão da deposição? O legalismo empresarial ocupa a posição 2 na tabela. Por outro lado, os sindicatos e movimentos sociais rejeitam o caráter recessivo do pacote, os cortes de gastos com políticas sociais e se mobilizam contra o ajuste. Estão navegando contra a maré da recessão. Na tabela, estão na posição 4.

Os aliados de Dilma no Congresso Nacional enfraqueceram-se bastante na virada do primeiro para o segundo mandato. A presidência da Câmara foi conquistada por Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que rompeu com o governo em julho, formalizando uma posição política que prevaleceu desde sua posse em fevereiro. Formalmente, os 9 partidos que assinaram o manifesto em defesa do mandato de Dilma, semana passada, representariam 301 votos contra o impeachment, montante que encerraria o sonho da oposição e o pesadelo da situação. São eles: PC do B, PDT, PMDB, PP, PR, Pros, PSD, PRB e PT. Mas, na realidade, estima-se que 34 dos 67 deputados do PMDB apoiam o impeachment. Há também parlamentares do PP e PSD contra a continuidade do mandato de Dilma. Segundo cálculos do deputado tucano Carlos Sampaio, líder do PSDB na Câmara, os signatários do movimento pró-impeachment já teriam quase 280 assinaturas. Mesmo que seja um número exagerado, não deixa de ser preocupante. São necessários 342 votos, pelo menos. Porém, o movimento pelo impeachment está contribuindo para o estado político do “quanto pior melhor”, de modo que a pressão para a renúncia, também presente nos protestos de rua dos oposicionistas, também atua na atmosfera política. Ademais, a própria base aliada tem se dividido em relação à austeridade. Na votação da MP 665 na Câmara, votaram contra o governo, por exemplo, o PDT, em bloco, quase metade do PP e cerca de um quinto do PMDB.

A coalizão da austeridade é forte, estruturante, mas a da antiausteridade também. E os grupos que desejam a deposição de Dilma estão empoderados. A pressão conjunta dos que querem derrubar a chefe do Executivo e dos críticos da austeridade é corrosiva e pode se tornar letal. Além disso, o empresariado e as forças partidárias de centro que apoiam Dilma podem avaliar que a continuidade do governo é mais custosa do que o risco de depô-lo.

Independentemente do desfecho do drama político do governo Dilma Roussef, cabe uma digressão. Um dos principais problemas em jogo na situação atual é a viabilidade de um projeto de esquerda governista para o Brasil. Seria uma perda incomensurável para o esforço contra a imensa desigualdade brasileira e o déficit de cidadania que a esquerda ficasse orfã de uma liderança partidária. O historiador inglês e brazilianista Leslie Bethel, sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras, em palestra recente no Latin American Centre, no Reino Unido, avaliou que, ao longo da história do Brasil, a esquerda foi fraca, enfrentou ilegalidade, repressão, cooptação pelo Estado etc, mas que isso mudou com o surgimento do PT e com a vitória de Lula, em 2002, a maior conquista da esquerda latino-americana desde que Allende venceu as eleições no Chile em 1970, encabeçando a Unidade Popular, uma coalizão de esquerda. Para Bethel, o Brasil precisa de um forte partido de esquerda e a situação do PT está crítica. A decisão do STF de considerar inconstitucional as doações empresariais aos partidos e eleições é importantíssima e uma vitória das forças progressistas da sociedade civil. Oxalá essa decisão, a dolorosa experiência representada pelo envolvimento do PT na Operação Lava Jato e outros dilemas do período de governos petistas aberto em 2003 sirvam de alavanca para a renovação da esquerda democrática brasileira.

* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador das relações entre Política e Economia e Visiting Researcher Associate da Universidade de Oxford (Latin American Centre)