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Impacto político-estrutural da coalizão do ajuste fiscal

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A comparação entre o comportamento dos componentes políticos da crise do governo Dilma observados no contexto das manifestações de 15 de março e no momento atual indica uma tendência no sentido de redução das tensões. Um elemento estruturante nessa tendência é a conformação e o relativo avanço da coalizão do ajuste fiscal, que impacta sobre os atores, as ruas e as instituições. Além disso, não há fato jurídico que possa fundamentar um processo de impeachment contra a presidenta Dilma, pelo contrário, seu nome não consta na lista que Rodrigo Janot enviou ao STF.

Já abordei nessa coluna que não há exatamente uma crise do Estado, ainda que ocorra uma intensificação da disputa em torno de suas políticas, sobretudo proveniente do partido liberal, no sentido amplo do termo. Crise de Estado ocorreu do colapso do Estado nacional-desenvolvimentista, no início dos anos 1980, até o Plano Real. Desde 1999, o arranjo institucional de política macroeconômica é o mesmo, o chamado tripé (câmbio flutuante, metas de inflação e arrecadação de superávit primário). Em Lula 1 (sobretudo desde a posse de Mantega na Fazenda), Lula 2 e Dilma 1, esse arranjo institucional, como ficou esclarecido em um artigo importante do hoje ministro do Planejamento Nelson Barbosa, foi submetido a uma orientação de política econômica de corte social-desenvolvimentista. Assim o fazendo, algumas conquistas foram obtidas, como a melhora no ritmo de crescimento nos dois mandatos de Lula e em indicadores como dívida pública, emprego, mobilidade social ascendente etc. Em Dilma 1, apesar do elevado índice de emprego, o baixo crescimento, a elevação dos gastos públicos e os problemas de corrupção, a Ação Penal 470 e a Operação Lava Jato ensejaram, desde as eleições de 2014, a emergência de uma oposição com base popular e a alteração das relações políticas do conjunto do empresariado com o governo federal. 

Por outro lado, a mudança na política macroeconômica desde Lula 1 não ocorreu na intensidade necessária para a efetiva superação da tendência de estagnação do crescimento. Luiz Carlos Bresser-Pereira é um dos economistas que tem esclarecido esse problema. Devido, entre outros fatores, aos limites da política macroeconômica, sobretudo a valorização cambial e os juros altos, ambos prejudiciais à indústria de transformação, a estratégia social-desenvolvimentista acabou chegando a um esgotamento, sendo desafiada a reciclar-se para uma eventual retomada. Nos governos Lula, essa estratégia apoiou-se no boom das commodities e em Dilma 1, principalmente na política anticíclica, sobretudo nas desonerações, em especial na folha de pagamento. 

Com o esgotamento da estratégia social-desenvolvimentista nos termos em que ela foi implementada, emergiu uma contraofensiva liberalizante, cuja maior conquista foi a posse no cargo de ministro da Fazenda de um nome de confiança do mercado financeiro. Essa posse representa uma concessão das lideranças social-desenvolvimentistas às pressões neoliberais, explicável pela mudança na relação de forças resultante do processo eleitoral de 2014. Antes mesmo de empossado, o ministro, que tem a chancela do grande empresariado de todos os setores de atividade, inclusive o da estratégica grande mídia, anunciou as medidas de ajuste fiscal que ora estão sendo implementadas.

O amplo respaldo à redução do Estado, proveniente dos capitalistas e de manifestantes que foram às ruas em 15 de março e 12 de abril com bandeiras do ideário econômico liberal, mas também do virtual apoio político-institucional do PMDB à votação das medidas no Congresso Nacional (embora não necessariamente em sua totalidade), constitui o que denomino de coalizão do ajuste fiscal. Essa coalizão vem produzindo um impacto estruturante na (des)ordem política. As bases do PSDB no mercado financeiro e, inclusive, alguns de seus think tanks, como a Fundação iFHC, apoiam a equipe econômica de Dilma e consideram que esse novo núcleo ministerial, assim como a capacidade das instituições do Estado funcionarem adequadamente constituem um importante contrapeso em relação ao agravamento da crise e ao movimento de impeachment (ver artigo de Sergio Fausto na Folha de S. Paulo, 9 de abril). Por outro lado, o sectarismo antipetista e anti-Dilma que tem predominado na campanha contra a corrupção encaminhada pelas forças de oposição serve de cruzada político-ideológica para aplainar o caminho da contraofensiva liberal em oposição ao processo de transformação social-desenvolvimentista do Estado. A mudança na orientação da política macroeconômica, que tem na perversa combinação entre elevação da taxa básica de juros e ajuste fiscal suas principais expressões, constitui o núcleo duro da contraofensiva liberal.

Há um elemento político de disputa sobre a composição do ajuste. Para o PT, resta tentar operar a difícil tarefa, nesse momento da conjuntura institucional, de fazer com que o ajuste não recaia ou recaia apenas minimamente sobre os trabalhadores, embora, na verdade, o crescimento do desemprego já seja um resultado negativo da política de produção da recessão. Por sua vez, o empresariado industrial quer que o ajuste recaia sobre os gastos do governo, e não sobre o setor produtivo. Ademais, para os parlamentares da base aliada não é tão simples aprovar, ao menos na íntegra, as medidas provisórias que alteram direitos trabalhistas e previdenciários. 

As manifestações oposicionistas de 12 de abril contaram com uma participação expressivamente inferior à ocorrida em 15 de março. Mas elas não foram desprezíveis, pelo contrário. Embora a manifestação de São Paulo tenha sido novamente a maior, foi cerca de 52% menos massiva que a anterior, segundo o Datafolha. De qualquer modo, a curva de participação oposicionista nas ruas é declinante. Além disso, não há nenhum fato que possa ensejar processo de impeachment contra a presidenta Dilma, por mais que, segundo o Datafolha, 63% dos brasileiros avaliem, mediante uma consulta de opinião sujeita a críticas metodológicas, que um processo nesse sentido deveria ser aberto pelo Congresso Nacional, em função do que já foi revelado pela Operação Lava Jato. Outrossim, em março a queda na avaliação positiva do governo era vertiginosa, tendo se estabilizado no último levantamento do Datafolha. Esses elementos e os ganhos em termos de diálogo institucional do ministro Levy com o Congresso Nacional, sobretudo com o PMDB, para aprovar as medidas relacionadas à meta de superávit primário de 2015 são alguns dos indícios importantes do impacto estruturante da coalizão do ajuste fiscal que essas próprias manifestações reforçam, provendo, por vias tortuosas, respaldo sociopolítico à mudança liberal operada na política econômica. 

Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador das relações entre Política e Economia.