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Duas reformas democráticas

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Desde os anos 1960, as forças progressistas brasileiras – especialmente as esquerdas e os nacionalistas democráticos –, que lutam contra o conservadorismo em diversas esferas da estrutura social e das relações sociais, ergueram bandeiras de luta por reformas como meio de impulsionar as conquistas democráticas em uma sociedade historicamente marcada pelo autoritarismo social e, frequentemente, político-institucional, e pelas desigualdades de vários tipos. Nesse trajeto, defenderam, por exemplo, já antes do Golpe de 1964, as reformas agrária, urbana, fiscal, bancária, universitária, eleitoral e partidária. Na transição democrática e na Constituinte de 1987-1988, a mobilização política de atores da sociedade civil pelas reformas reemergiu e resultou em vários avanços institucionais e organizativos. Após o retrocesso dos anos 1990, período de contrarreformas, os anos 2000 ficaram marcados por uma nova onda de conquistas sociais e democráticas, especialmente a nova geração de políticas sociais e a revitalização de mecanismos de democracia participativa, ambas originadas em ações dos dois governos de Lula. Ao final do primeiro lustro dessa segunda década do terceiro milênio, o governo Dilma 2, progressista – embora não isento de contradições - e recém-empossado, tem o propósito de encaminhar duas reformas muito importantes, a reforma política e a regulamentação dos meios de comunicação social.

O caráter democrático da reforma política dependerá de suas decisões, especialmente de sua capacidade de acabar com a presença do poder econômico empresarial no financiamento das campanhas eleitorais para todos os cargos do sistema representativo. Esse problema não é exclusivamente brasileiro, mas o fato é que aqui ele alcançou um nível insustentável e há amplo apoio na opinião pública para que as empresas sejam proibidas de doar recursos financeiros às campanhas eleitorais. O financiamento empresarial das campanhas eleitorais produz a oligárquica e antidemocrática figura do representante censitário. Há muito tempo o voto, no Brasil, não é mais censitário, é universal, ou seja, o direito de voto não depende da condição econômica do eleitor. No entanto, o eleito, em regra, é um representante censitário, uma vez que, cada vez mais, os vencedores são os que mais arrecadam recursos para financiar suas campanhas. Ao invés das eleições serem uma disputa pelo voto dos eleitores, elas transformaram-se, primeiramente, em uma disputa por recursos financeiros, que passam a ser a locomotiva dirigente dos vagões de votos assim conquistados pelos candidatos contemplados com as milionárias doações empresariais. A ampliação da participação das mulheres na política, a rediscussão do sistema partidário, que virou uma indústria de proliferação de partidos artificiais e fisiológicos, a alteração do regime de voto personalista nas eleições proporcionais, que induz os eleitores a orientarem seus votos em uma miríade de indivíduos, e não em partidos, ou seja, em entidades coletivas com propostas abrangentes para a atuação parlamentar, todas essas são também tarefas importantes de uma reforma política democrática.

Por outro lado, o governo Dilma 2, tendo à frente o novo ministro das Comunicações, Ricardo Berzoini, está disposto a implementar a política regulatória dos meios de comunicação social, em especial a regulação econômica do setor. Segundo o artigo 220 da Constituição Federal, “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. No entanto, por ausência de regulamentação, os cidadãos convivem, sobretudo em relação ao espectro eletromagnético da radiodifusão (televisão e rádio), com uma elevadíssima concentração da propriedade. Ademais, o artigo 221 determina que “a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”. A referida lei até hoje não foi feita. O fato desses dois artigos constitucionais não estarem em vigor, por falta de regulamentação, fere a diversidade de opinião, pois ela depende de pluralidade de proprietários de meios de comunicação, além do que os conteúdos audiovisuais acabam se concentrando no Rio-São Paulo, prejudicando a produção independente. Se a revolução democrática é um processo irresistível de igualização, conforme teorizado pelo pensador liberal Alexis de Tocqueville, a regulamentação econômica dos meios de comunicação social, destinada a corrigir distorções que atentam contra a igualdade de condições, é um imperativo para o fortalecimento da democracia brasileira.

Tanto a reforma política quanto a regulação econômica dos meios de comunicação social podem corrigir estruturas institucionais, na política e no mercado de mídia, muito prejudiciais à igualdade democrática de condições. Os direitos da cidadania, os direitos políticos de homens e mulheres concorrerem às eleições em situação menos desigual, a participação das mulheres na política, a diversidade de opiniões e o direito humano à comunicação têm muito a avançar com essas duas reformas/revoluções democráticas, que se situam na corrente histórica das bandeiras de mobilização política das forças progressistas e nacional-populares.

Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador das relações entre Política e Economia.