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Desafio político da esquerda desenvolvimentista

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Semana passada, participei de um seminário internacional cujo título, traduzido para o português, foi “Crescimento, Crise, Democracia: A Economia Política das Coalizões Sociais e das Mudanças de Regime de Políticas Públicas”. Tal temário visou atrair pesquisas que contribuíssem para avaliar o pressuposto de que um determinado regime estruturado de políticas públicas, sobretudo as políticas econômicas e as políticas sociais, está vinculado a uma coalizão social e, portanto, uma mudança desse regime de políticas públicas depende da constituição de uma nova coalizão. O pano de fundo foi, por um lado, o neoliberalismo, sua crise e recalcitrância, e, por outro, o capitalismo desenvolvimentista e social, os dois principais modelos econômicos que inspiram os atores sociais chaves nas democracias dos países desenvolvidos e emergentes.

Essa reflexão tem muito a ver com as escolhas políticas no Brasil atual, um dos principais países emergentes. Após algumas importantes conquistas do que tenho denominado de campo social-desenvolvimentista, observa-se, com a escolha do novo ministro da Fazenda, um movimento que aponta para um relativo recuo. Uma versão mais organicamente autêntica daquilo que foi a gestão de Antonio Palocci retornará em janeiro. Creio que, de todas as variáveis econômicas, a que mais explica esse recuo político é o baixo crescimento que, por sua vez, tem uma grande relação com a taxa de investimento. Esta, em 2014, ficará em torno dos 16,5%, aquém não só dos 24% que Dilma desejava ter alcançado, mas também dos 19,2% de quando ela tomou posse. O crescimento tem alta correlação com a taxa de investimento.

Apesar de alguns dados positivos, como o elevado nível de emprego e a manutenção das políticas sociais, tivessem os empresários investido mais, o crescimento teria sido maior e muito provavelmente a história de 2014 teria sido outra. Mas o fato é que a ofensiva da coalizão neoliberal, observada na acirrada disputa eleitoral, inclusive se esforçando por rearticular o conjunto da burguesia no apoio à candidatura de Aécio Neves, tem muito a ver com o resultado fraco em termos de crescimento. A questão de fundo é a seguinte: o lado social do social-desenvolvimentismo foi mais bem sucedido que o lado desenvolvimentista. Para uma referência, entre 1951 e 1981, ou seja, antes da quebra do Estado nacional-desenvolvimentista, o Brasil cresceu, em média, 6,6% ao ano. Se a atual conjuntura internacional não é a mesma dos Anos Dourados, Índia, Rússia e África do Sul tiveram uma média de crescimento melhor que a brasileira no triênio 2011-2013.

No referido seminário, apresentei, em co-autoria, dois trabalhos abordando historicamente a relação entre duas variáveis: ação desenvolvimentista do Estado e coalizão sociopolítica. A Inglaterra não teria chegado à Revolução Industrial e à condição de nação liberal não fosse a coalizão entre elites do Estado monárquico e forças sociais (burguesia comercial e setores modernizadores da aristocracia agrária) durante o mercantilismo. O mesmo raciocínio se aplica à Alemanha de Bismarck, à social-democracia após 1945, assim como ao Brasil de Vargas e à tríplice aliança durante o regime militar iniciado em 1964. Quanto ao período histórico aberto em 2003, os avanços institucionais da coalizão social-desenvolvimentista foram maiores com Lula que com Dilma. Os espaços formais e informais de diálogo e concertação recuaram, deram vez a uma postura política de corte mais tecnocrático e voluntarista.

A face desenvolvimentista do movimento estrutural conscientemente orquestrado por Lula desde que escolheu José Alencar como seu candidato a vice, em 2002, e que resultou em um maior equilíbrio de classes entre capital e trabalho, essa face precisa ser tão objeto de preocupação do governo Dilma quanto o é a face da inclusão social. Se os empresários do setor produtivo não participarem efetivamente da construção do caráter desenvolvimentista do Estado e da formulação das políticas públicas de desenvolvimento, a coalizão neoliberal se apresentará diante dessas frações de classe (industriais e agronegócio) como alternativa ao governo do PT, como fizeram nas eleições de 2014. Em última análise, o financiamento da política social provém das relações de produção. Sem crescimento, o Estado social fica comprometido economicamente e politicamente, a não ser que a relação de forças fosse bem mais à esquerda do que efetivamente é. 

A esquerda terá condições de avançar em novas etapas da revolução democrática, promovendo, por exemplo, a tributação progressiva, aprofundando a valorização do salário-mínimo e melhorando os sistemas de saúde e educação, se for competente na ocupação de todos os espaços possíveis para ser força dirigente de uma coalizão com a burguesia produtiva, baseada em um compromisso de classe de promoção de um capitalismo nacional, antineoliberal, a serviço da nação, que supere a dependência em relação ao capital estrangeiro, que desacelere a exploração imperialista do mercado interno, um capitalismo social-desenvolvimentista, includente, promotor da equidade social possível na sociedade de classes. Encerro relembrando Antonio Gramsci:  “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem”.

Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador das relações entre Política e Economia.