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Persistências do autoritarismo em regime democrático

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Passados 50 anos da ocorrência do golpe militar que conduziu ao regime ditatorial de 21 anos de duração, é importante que a cidadania, ora em contexto de regime democrático, reflita sobre os significados de autoritarismo e democracia.

Autoritarismo e democracia não aparecem, na política prática e teórica, apenas como regimes. São também ideologias, tendências psicológicas e culturas políticas distintas. Mesmo em um regime democrático, pode-se identificar a persistência do autoritarismo no plano ideológico, na personalidade individual e na cultura política. É disso que esse artigo trata, especialmente da recalcitrante dimensão cultural do autoritarismo. 

As lutas sociais de resistência ao regime militar e pela ordem institucional democrática propiciaram inúmeras conquistas, que podem ser sintetizadas referindo-se ao início do texto da Constituição de 1988, que qualifica a República Federativa do Brasil como um Estado Democrático de Direito. Ao definir os fundamentos desse Estado, a Carta Magna destaca, entre outros, a cidadania e a dignidade da pessoa humana.

Se a duras penas temos um regime democrático, ainda há muito a percorrer para termos uma sociedade democrática. Esta depende do desenvolvimento e da manutenção permanentes de uma cultura democrática. Lamentavelmente, ainda convivemos, na vida cotidiana, com muita violência ilegítima, de diversos tipos, emanada de fontes e relações autoritárias, nas famílias, nas relações interpessoais, nos locais de trabalho, no campo e na cidade, nas ruas e comunidades, nas favelas, periferiais ou subúrbios, por parte de policiais militares e criminosos, nas instituições públicas que deveriam zelar pelos direitos da cidadania (escolas, delegacias policiais, presídios, hospitais), nos mais diversos tipos de organização associativa etc. Violência contra crianças e adolescentes, jovens, mulheres, negros, pobres e excluídos, trabalhadores, índios, homoafetivos, idosos, pessoas com deficiência, grupos religiosos, consumidores, enfim, seres humanos. Um breve acesso aos meios de comunicação, diariamente, basta para que uma enxurrada de casos dessa violência cotidiana nos afogue e nos faça perder o fôlego.

A cidadania ativa emergida na luta democrática, expressão maior da cultura democrática organizada, conquistou vários direitos e, em áreas importantes, cravou transformações nos aparatos do Estado para lograr garanti-los. Em 2003, na esfera do Governo Federal, por exemplo, a Secretaria de Direitos Humanos (SDH) adquiriu o status de ministério, assim como foram criadas a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e a Secretaria de Políticas para as Mulheres, ambas com o mesmo status da SDH.

Porém, ainda há muito que se avançar no âmbito das instituições públicas no sentido de garantir a efetividade dos direitos de cidadania e, entre os cidadãos, no sentido da emergência de práticas e relações que aprofundem a marcha rumo a uma sociedade democrática, alicerçada em uma cultura democrática. Um caminho fundamental para a efetividade dos fundamentos da cidadania e da dignidade da pessoa humana, afirmados pela Constituição Federal, é o aprofundamento das conexões institucionais democrático-participativas entre Estado e sociedade civil. A cultura autoritária é violenta, ela atenta contra todos os direitos humanos e sociais, a começar pelo direito à vida. 


Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF)e pesquisador das relações entre Política e Economia.