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Bolívia e Chile aguardam decisão sobre disputa territorial que já dura mais de um século

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SANTIAGO -De 19 a 28 de março, Bolívia e Chile enfrentaram-se em uma disputa territorial perante a Corte Internacional de Justiça (CIJ), em Haia, que remonta ao ano de 1893. Depois de anos de malsucedidas tentativas de negociação com o Chile, em 2013 a Bolívia impetrou uma ação perante a CIJ, cuja pauta seria seu direito histórico de acesso soberano ao mar. Em troca, o governo de Evo Morales estaria preparado para fazer generosas concessões. 

Após a apresentação de toneladas de documentos históricos e pareceres jurídicos, a CIJ convocou as partes para suas respectivas alegações orais; uma maratona, para a qual ambos os países não pouparam despesas, com a contratação de estrelas da advocacia internacional. 

O presidente da CIJ afirmou que o veredicto seria anunciado no “momento apropriado” em sessão pública. O que pode significar de três a quatro meses. As sentenças da Corte são geralmente salomônicas, isto é, visam o equilíbrio e o desarmamento de espíritos. Seus veredictos são vinculantes, devem ser cumpridos e não são apeláveis. 

O Chile já insinuou que, em caso de condenação, poderia ignorar o veredicto. Nesse caso, porém, o caso vai para o Conselho de Segurança da ONU. De todo modo, antes do final de 2018, de duas, uma: ou a Bolívia, ou o Chile cantarão vitória. 

A mera pronúncia do nome do atual presidente boliviano acomete a maioria dos chilenos a ataques de urticária com racismo só mal disfarçado - tratam-no como “o índio”. E basta a palavra de ordem “Mar para a Bolívia”, e os patriotas chilenos sobem às barricadas, verbais e físicas, como ocorreu recentemente em Antofagasta, no norte do Chile, em virulento protesto contra um tweet disparado por Morales, dizendo “Antofagasta era, é e será território boliviano”. 

Antofagasta, é preciso saber, era uma cidade próspera e o mais importante porto da Bolívia, invadida pela marinha chilena em 14 de fevereiro de 1879, e desde então anexada ao Chile junto com a incorporação de 120.000 km2 do deserto de Atacama da Bolívia. Território “usurpado”, segundo a versão boliviana, mas declarado “território inviolável” pelo Chile, que o defende com risível, mas notável contingente da marinha, caças-bombardeiros F-16 e pelo menos 150 tanques alemães comprados à OTAN. 

Confiante, Evo sabe que - de povos indígenas pobres a milionários exportadores de soja – em sua demanda marítima conta com a torcida incondicional de 11 milhões de bolivianos, dos quais a maioria não sabe o que é uma praia. A reação chilena à provocação de Evo não tardou um dia. “Mais uma vez o presidente (boliviano) está errado. Antofagasta era, é e permanecerá chileno”, devolveu pelo Twitter Sebastián Piñera, o bilionário e recém empossado presidente conservador do Chile. 

Finalmente, entrou em cena o novo ministro das Relações Exteriores chileno. Ex-comunista exilado na antiga Alemanha Oriental e Cuba, mas convertido em conservador radical, Roberto Ampuero partiu para o ataque, taxando a posição boliviana de “falsificadora da história”. Porém, a contundência de Ampuero não contou com a unanimidade dos chilenos. “A posição de nossas autoridades e de bem pagos ‘peritos’, que defendem nossos supostos interesses perante o tribunal, foi apoiada por uma campanha midiática intensiva e alta virulência nas redes sociais. Sempre com a intenção de simular a suposta solidariedade incondicional dos chilenos face ao questionamento boliviano”, protestou Juan Pablo Cárdenas, professor de Jornalismo e editor-chefe da Rádio Universidad de Chile. 

E então Cárdenas meteu o dedo na ferida da inflexibilidade chilena: “Do ponto de vista da nossa vasta geografia, parece absurdo, medíocre e pequeno que o Chile não esteja preparado para oferecer um corredor, uma estrada, uma ferrovia para um vizinho que precisa de acesso às rotas marítimas e trânsito para as suas exportações”. 

Na Guerra do Salitre (1879-1883), patrocinada por ingleses, donos de minas e usinas de salitre, a Bolívia perdeu 120 mil km2 de seu território, incluindo 400 quilômetros de litoral, com isso condenada a penar na condição de único país mediterrâneo (cercado de terras) da América do Sul. O conflito envolveu Chile, de um lado, e Peru e Bolívia, de outro. 

Com o Tratado de Paz e Amizade de 1895, a Bolívia aceitou a “absoluta e contínua supremacia” do Chile em troca de reparações financeiras. No entanto, um acordo adicional previa regulamentar a “transferência de territórios”: os distritos de Tacna e Arica, que pertenciam ao Peru, seriam dados para a Bolívia. Surpreendido pela simultânea anexação da Puna de Atacama (hoje território da província de Salta) pela Argentina, o Chile suspendeu as negociações, retomadas apenas em 1904, com a assinatura dos “tratados de normalização” das relações com a Bolívia, desde então interpretados pelo Chile como fixação definitiva de fronteiras, mas considerados uma fraude pelo vizinho. Em 1929, o Tratado de Lima determinou que Tacna retornaria ao Peru, e Arica ficaria com o Chile. 

Mas eis que, cinquenta anos depois, a ditadura de Augusto Pinochet sentaria à mesa com a ditadura boliviana de Hugo Banzer. Mediante o Acordo de Charaña, de 1975, o Chile oferecia à Bolívia uma faixa costeira ao norte de Arica e um corredor terrestre, soberano, em troca de um enclave territorial próximo ao monumental Salar de Uyuni, onde hoje se concentram as reservas de lítio da Bolívia. Mas o contrato não foi concluído, desta vez por causa da rejeição do Peru, que cobrava status trinacional às negociações. 

No entanto, aquela iniciativa dos ditadores redundaria na cessão de um terminal marítimo à Bolívia no porto de Arica, hoje mais motivo de reclamações do que solução de problema. Em 1978, a Bolívia e o Chile romperam suas relações diplomáticas, que desde então existem apenas em nível consular. 

Em tenra idade, o escritor uruguaio Eduardo Galeano, morto em abril de 2015, empreendeu uma viagem de pesquisas jornalísticas à Bolívia. Em seu relato, disse que certo dia foi a um bar tomar cerveja. “Às oito da noite”, lembra, “fui cercado por um grupo de bolivianos, e um deles disse que me pedia desculpas antecipadas pela pergunta que queria me fazer em nome de seus camaradas. Fascinado, perguntei sobre o que era, e que mandasse ver. Então o boliviano Aurélio me olhou nos olhos e murmurou: ‘Hermanito, diga-nos como é mesmo o mar?’”.