ASSINE
search button

'Project Syndicate': O preço da indiferença da Europa

O debate sobre a migração na Europa assumiu um caráter preocupante, diz 

Compartilhar

O Project Syndicate publicou nesta segunda-feira (31/08) um artigo do escritor e filósofo francês Bernard-Henri Lévy em que manifesta sua indignação diante da tragédia da imigração na Europa, assim como o Jornal do Brasil havia feito no domingo (30/08).

>> Na Europa, colonizadores se calam diante da tragédia do Terceiro Mundo

Lévy, personalidade influente na França, faz duras críticas à indiferença, xenofobia e paranóia de muitos num momento em que milhares de pessoas lutam para sobreviver.

"Tudo começou com a criação do conceito extremamente vago (uma aberração jurídica) de 'migrante', que confunde a diferença, essencial ao direito, entre a migração econômica e a migração política, entre as pessoas que fogem à pobreza extrema e as que foram forçadas a abandonar as suas casas devido à guerra. Ao contrário dos migrantes econômicos, os que fogem à opressão, ao terror e ao massacre beneficiam de um direito inalienável ao asilo, que implica uma obrigação sem reservas por parte da comunidade internacional de lhes proporcionar abrigo", escreve Lévy, que é um dos líderes do movimento chamado 'novos filósofos'. 

"Mesmo quando esta diferença é reconhecida, faz muitas vezes parte de outro estratagema, o de tentar convencer os mais crédulos de que os homens, mulheres e crianças que pagaram milhares de dólares para viajar numa dessas frágeis embarcações que vão à costa nas ilhas de Lampedusa ou Kos são migrantes econômicos. No entanto, o que é fato é que 80% dessas pessoas são refugiados que tentam fugir do despotismo, do terror e do extremismo religioso de países como a Síria, a Eritreia e o Afeganistão. É por isso que o direito internacional exige que os casos dos requerentes de asilo não sejam analisados a granel, mas sim individualmente.

Mesmo quando se aceita este fato, quando a multiplicidade de pessoas que tenta desembarcar nas praias de Europa mostra que é totalmente impossível negar as barbaridades que as conduzem à fuga, surge uma terceira manobra de diversão. Algumas pessoas, incluindo o Ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, afirmam que os conflitos que geram refugiados ocorrem apenas nos países árabes que estão a ser bombardeados pelo Ocidente.

Mais uma vez, os números não mentem. A principal fonte de refugiados é a Síria, onde a comunidade internacional se recusou a implementar as operações militares previstas ao abrigo da “responsabilidade de proteger”, embora o direito internacional exija a intervenção armada quando um déspota louco, após ter assassinado 240.000 membros da sua população, se empenha em esvaziar o seu país. O Ocidente tampouco está bombardeando a Eritreia, outra grande fonte de refugiados.

Outro mito prejudicial, imortalizado por imagens chocantes de multidões de refugiados que atravessam as vedações das fronteiras e tentam entrar em comboios em Calais, é o de que a “Fortaleza Europa” está sob o ataque de ordas de bárbaros. Esta ideia está errada em dois níveis.

Em primeiro lugar, a Europa está longe de ser o principal destino destes migrantes. Cerca de dois milhões de refugiados oriundos da Síria fugiram para a Turquia, e um milhão fugiu para o Líbano, que tem apenas 3,5 milhões de habitantes. A Jordânia, com uma população de 6,5 milhões de habitantes, já acolheu 700.000 refugiados. Entretanto, a Europa, numa demonstração de egoísmo conjunto, jogou por terra um plano para alojar 40.000 refugiados que tinham requerido asilo nas cidades onde se refugiaram, na Itália e Grécia.

Em segundo lugar, a minoria que escolhe a Alemanha, França, Escandinávia, Reino Unido ou Hungria não é formada por inimigos que têm o propósito de nos destruir ou de viver às custas dos contribuintes europeus. São requerentes de liberdade, adoram a nossa terra prometida, o nosso modelo social e os nossos valores. São pessoas que clamam 'Europa! Europa!' da mesma forma que milhões de europeus, ao chegarem à Ilha de Ellis há um século, aprenderam a canção 'America the Beautiful'.

Além disso, existe o vil boato de que este assalto imaginário foi orquestrado clandestinamente por estrategistas da “grande substituição”, que defende a substituição dos europeus por estrangeiros, ou pior, por agentes de uma jihad internacional, e que os migrantes de hoje são os terroristas de amanhã em comboios de alta velocidade. Deverá salientar-se que esta ideia é pouco razoável.

Consideradas em conjunto, estas distorções e ilusões provocaram graves consequências. Para começar, o Mar Mediterrâneo foi abandonado aos traficantes de seres humanos. O Mare Nostrum está se tornando gradualmente a grande vala comum marinha descrita por um poeta longínquo. Este ano, cerca de 2.350 pessoas morreram afogadas.

Porém, para a maioria dos europeus, estas pessoas são pouco mais do que estatísticas, tal como os homens e as mulheres que sobreviveram à viagem continuam incógnitas e indistinguíveis, uma massa anônima ameaçadora. A nossa sociedade sensacionalista, normalmente tão rápida na produção de celebridades imediatas para servir de “rosto” à crise do momento (desde a gripe suína a uma greve de caminhoneiros), não demonstrou interesse relativamente ao destino destes 'migrantes'.

A Europa, assediada pelos seus xenófobos e atormentada por dúvidas sobre si própria, virou as costas aos seus valores. De fato, esqueceu-se do que é. Os sinos dobram não só pelos migrantes mas também pela Europa, cujo patrimônio humano está desmoronando diante dos nossos olhos".