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‘El País’: Argentina em transição

'É de alto risco investigar o poder. Nisman morreu por fazê-lo’, diz jornal espanhol

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"Depois de Nisman, se respira uma violência latente, mas muito mais profunda. O clima político nunca foi tão tóxico desde 1983, quando os militares abandonaram o poder. A analogia porque os porteños, talvez os argentinos em geral, optaram pelo mesmo mecanismo de defesa de então: a negação". É o que diz um artigo de Héctor E. Schamis, do jornal espanhol El País, publicado nesta segunda-feira (04/05)

Naqueles anos nenhum vizinho havia visto o aparato de repressivo da noite anterior. Ninguém havia sido sequestrado, ninguém havia reparado nos automóveis sem placas, nem naqueles sujeitos com trajes amarrotados e óculos escuros em plena noite. O mais negador até se animava a um “por algo terá sido”.

Sempre é um desafio explicar como e por que uma sociedade se fecha e nega, assinando um cheque em branco para o despotismo. Quando em dezembro de 1983 Raúl Alfonsín criou uma comissão para investigar aqueles fatos, o país acordou com o que já sabia, mas havia negado. O paralelo ilustra este presente. Um fiscal morto — assassinado, segundo qualquer perícia séria — e um governo que desde então se dedicou a matá-lo muitas outras vezes, agora com a arma da calúnia. Como resultado, o país não quer mais falar de Nisman. Talvez a negação tenha voltado, ou a sociedade acredita na fábrica difamadora oficial. Talvez em breve vamos ouvir “Terá sido por algo”. Seria um círculo completo.

Neste contexto, o clima eleitoral começa a esquentar, com sucessivas eleições em diferentes distritos até a presidencial de outubro. A toxicidade vai aumentar. No que indica una inexorável transformação do sistema de partidos, vai se confirmando a lenta agonia do radicalismo, a saturação da classe média com o kirchnerismo e a fragmentação do peronismo, ao ponto de sua dissolução como identidade política. O PRO se consolida como um partido urbano, talvez o mais importante. É incerto hoje se ele conseguirá o prêmio maior.

Nesse escasso tempo livre de uma campanha, a elite política tenta pensar na mudança de ciclo, as políticas de longo alcance e seus consensos necessários. Essa foi a convocatória desta semana do jornal Clarín, para refletir sobre a política grande: que tipo de acordos entre os partidos são necessários para a governabilidade democrática e para recuperar o caminho do crescimento econômico?

Depois de doze anos de governo Kirchner, a degradação institucional não escapa a ninguém. Resulta quase óbvio que antes de coordenar as políticas, o grande pacto argentino é o de forjar consensos para reconstruir o tecido institucional, o que inclui voltar a despolitizar as instâncias neutras do Estado. A Argentina não tem estatísticas confiáveis, por exemplo. O oficialismo transformou o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos em uma operação partidária que informa o que é mandado a partir do Executivo. Tampouco possui uma política monetária independente. O governo também politizou o Banco Central, agora nomeando diretores com mandados posteriores à mudança de governo.

O kirchnerismo destruiu a carreira do serviço exterior, colonizando a diplomacia profissional com apparatchiks, indivíduos carentes da experiência e as condições intelectuais necessárias. A Argentina não tem diplomacia no sentido estrito do termo. Sua política exterior é por isso errática, incoerente e opaca. A presidente acaba de assinar múltiplos acordos com a Rússia de Putin, que aparentemente incluem acordos militares e de energia nuclear, dos quais pouco se sabe. Ninguém está interessado em importar uma Chernobyl.

Isto como ilustração, porque a degradação institucional é ainda mais profunda, compreendendo a esfera dos direitos e garantias constitucionais. Na Argentina é de alto risco investigar o poder, seja quando a investigação é feita por um jornalista ou por um promotor. O problema é que investigar o poder é toda uma definição de um sistema democrático. Isso está ancorado numa Constituição que garante direitos, que se materializam por meio da justiça independente e da liberdade de imprensa. Com uma justiça independente, o Estado pode perder um juízo: isso limita a imparcialidade. Com jornalistas capazes de criticar, a sociedade ganha força para fazê-lo: isso gera debate e participação. Isso é que é viver numa democracia, algo que só existe timidamente na Argentina de hoje.

Se pensamos em grandes pactos políticos para uma Argentina em transição, então é preciso lembrarmos que os acordos pendentes são precisamente institucionais. A transição política volta a ser equivalente a uma mudança de regime, uma transição à democracia. Trinta e dois anos mais tarde, terá que voltar a começar. O promotor Nisman é a metáfora mais eloquente disso: morreu por investigar o poder.