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Ansa: 'Luta das vítimas do amianto ganha novo capítulo'

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Casale Monferrato e Rio de Janeiro estão a 9,2 mil quilômetros e um Oceano Atlântico de distância. Mas em breve as trajetórias dessa cidade italiana de 34,5 mil habitantes e da segunda maior metrópole brasileira podem se encontrar. Ambas são protagonistas de um dos capítulos da incansável luta das vítimas do amianto por justiça e reparação.

Neste momento, um promotor de Turim, Raffaele Guariniello, reúne elementos para abrir um processo contra os ex-donos da Eternit pelas mortes devido à exposição ao asbesto de italianos que trabalharam em fábricas do grupo em outros países. Entre elas, uma unidade - já extinta - do bairro da Tijuca.

Os dois municípios fazem parte da mesma história desde 1947, quando Stefano Cattaneo Adorno, um conde da região da Ligúria, foi a Casale, na época sede de uma das mais importantes plantas da Eternit. Seu objetivo era recrutar pessoas dispostas a cruzar o oceano para trabalhar em uma fabricante de produtos de amianto - um mineral altamente cancerígeno - na então capital do Brasil.

O conde conseguiu arregimentar dezenas de famílias e as embarcou em Gênova rumo ao Rio de Janeiro. A fábrica foi inaugurada em 1949 com o nome de Civilit, sendo incorporada em 1962 pela Eternit do Brasil. A unidade encerrou suas atividades no final da década de 1960, e muitos italianos voltaram para sua terra natal.

Destes, segundo as investigações do promotor Guariniello, pelo menos 40 famílias perderam um de seus membros por doenças ligadas ao asbesto. Uma delas é a de Italo Ferrero, que tinha apenas oito anos quando partiu para o Brasil ao lado dos pais e da irmã.

"Meu pai trabalhava na fábrica da Eternit em Casale, ele era chefe das chapas que faziam as telhas. Em 1947, no fim da guerra, o marquês Cattaneo Adorno, de Gênova, veio aqui procurar pessoas para abrir uma fábrica no Rio de Janeiro. Nós chegamos em março de 1949. A fábrica se chamava Civilit e fazia as mesmas coisas da Eternit de Casale: tubos, telhas, caixas d'água", conta Italo.

A família voltou para a Itália em 1963, um ano depois da incorporação da empresa pela Eternit. Seu pai, Giovanni Ferrero, que trabalhou respirando amianto durante 44 anos, morreu em janeiro de 1972 de câncer no fígado. Sua irmã, Maria Giuseppina Ferrero, secretária de um gerente na Civilit, faleceu por causa de um tumor no intestino em abril do ano passado. Ambas são doenças difíceis de ligar à contaminação por asbesto. Mas um cunhado de Italo, marido de sua irmã e chefe de manutenção da parte elétrica na fábrica do Rio, morreu de mesotelioma, um tumor que atinge as membranas que revestem o pulmão e também conhecido como o câncer do amianto.

Incurável, essa é a mais grave de todas as patologias provocadas pelo contato com o mineral, mas também há outras. Segundo Ubiratan de Paula Santos, médico do Instituto do Coração (Incor) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, a exposição ao asbesto aumenta os riscos de se contrair câncer de pulmão, ovário e laringe. Além disso, há indícios de que o amianto eleva a possibilidade de tumores no cólon e no estômago. A substância ainda provoca uma doença chamada asbestose, uma fibrose pulmonar que causa progressiva falta de ar e pode levar à morte.

"O mais comum é que essas doenças estejam relacionadas à exposição no trabalho. Mas qualquer uma delas pode ser contraída por exposição ambiental, principalmente o mesotelioma. Ele não depende de uma grande carga de exposição. Familiares de trabalhadores de fábricas de amianto que iam para casa com as roupas sujas acabavam tendo contato com as fibras e desenvolvendo a doença. Eu tive pacientes que faleceram assim", relata Santos.

Parceria

Para conseguir os documentos necessários para abrir o processo, Guariniello conta com a ajuda da brasileira Fernanda Giannasi, auditora aposentada do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e uma das maiores defensoras da proibição do uso do mineral. Ela conta ter entregado, por meio da Associação Brasileira de Expostos ao Amianto (Abrea), documentos que comprovam a relação da Eternit do Brasil com a da Itália, algo crucial para que o caso prossiga na Justiça do país europeu.

"Levaram a ele documentos muito assertivos e comprobatórios da relação da Eternit do Brasil com a da Itália, inclusive com remessas dos lucros aqui aferidos para a Itália. A Eternit vende a imagem de que é o nome de uma tecnologia e de que cada fábrica tinha a sua autonomia, mas não existe uma Eternit independente. Ele [Guariniello] ficou muito impressionado, as provas são muito claras", garante Giannasi.

Um desses documentos é uma cópia da carteira de trabalho de Italo Ferrero, que mostra o vínculo com a Civilit. "De um dia para o outro, passou a ser Eternit", acrescenta. A ex-fiscal e a Abrea sustentam que a Eternit do Brasil tinha a participação da família Schmidheiny, ex-controladora da Eternit suíça, por sua vez dona da extinta unidade italiana de Casale Monferrato.

Procurada, a Eternit do Brasil não quis comentar o caso e nem esclarecer se havia presença europeia na sua composição acionária. A companhia também se recusou a dizer se assumira todo o passivo da Civilit quando da sua incorporação, em 1962, como manda as legislações brasileira e italiana.

Príncipe do amianto

A investigação de Guariniello é mais uma tentativa de fechar o cerco jurídico em torno de Stephan Schmidheiny, CEO da Eternit suíça entre 1976 e o começo dos anos 1990. Apelidado de "príncipe do amianto", ele se livrou da cadeia após a Corte de Cassação de Roma declarar prescrito o crime de desastre ambiental doloso pelo qual ele havia sido condenado em segundo grau a 18 anos de prisão.

A sentença final, pronunciada em novembro passado, provocou revolta no país e críticas até do primeiro-ministro Matteo Renzi. O caso se referia justamente à fábrica de Casale, que até meados dos anos 1980 liberava fibras do asbesto no meio ambiente, causando a contaminação de milhares de pessoas.

Estima-se que essa unidade tenha provocado a morte de mais de 3 mil indivíduos. Como o período de latência de algumas doenças, incluindo o mesotelioma, pode chegar a 30 ou 40 anos, até hoje ocorrem de 50 a 60 mortes por ano na cidade devido à exposição ao mineral.

No entanto, em breve Stephan Schmidheiny deverá ser levado novamente ao banco dos réus na Itália. Ele será citado em um processo - chamado "Eternit Bis" - pelo homicídio doloso de 256 pessoas que morreram de mesotelioma em Casale durante o período em que ele comandou o grupo Eternit. Neste caso, os eventuais crimes ainda não teriam prescrito.

A denúncia referente aos italianos que trabalharam na fábrica do Rio e de outros países - como Bélgica e França - seria uma espécie de "Eternit Três", e também por homicídio. Atualmente, Schmidheiny é um filantropo e ambientalista respeitado. Seu nome foi destaque na conferência Rio-92 e ele patrocina projetos de desenvolvimento sustentável no mundo todo. Algo que dói ainda mais nas vítimas do amianto.

Para Italo, o magnata suíço é um "desgraçado", um "criminoso que deve ir para a cadeia e não sair mais". "Depois ele diz que é ecologista, um grande benfeitor da humanidade. Que coisa absurda! Não é possível que uma pessoa que mata milhares e milhares não tenha que pagar a conta", afirma.

Mas para isso ainda há um longo caminho, um muito maior do que o que Italo percorreu em 1949 para ir ao Rio, cidade que deveria dar uma nova vida à família Ferrero, porém acabou lhes presenteando com a morte. Mas o italiano pode ao menos comemorar uma coisa: aos 74 anos, tendo trabalhado nove deles na Civilit e na Eternit do Brasil, ele não sofre de nenhuma doença causada pelo asbesto. Uma alegria pequena para quem perdeu tanto.