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'Financial Times': China, Rússia e a 'doutrina Sinatra'

Pequim e Moscou querem nova ordem nas relações internacionais baseada em ‘esferas de influência’

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O Financial Times publicou nesta terça-feira um artigo sobre uma possível nova ordem, que se desenha no mundo, com o estreitamento das relações entre os dois gigantes Rússia e China. “Durante séculos, as armadas européias cruzaram os sete mares no intuito de explorar, negociar, construir impérios e fazer a guerra. Então a chegada da marinha de guerra chinesa ao Mediterrâneo na próxima primavera, para exercícios conjuntos com a marinha russa será um momento marcante. Este plano foi anunciado na semana passada em Pequim, após um encontro de cooperação militar entre os dois países”, diz a matéria de Gideon Rachman.

Ele prossegue: “Os chineses vão sem dúvida gostar desse simbolismo ao navegar no tradicional coração da civilização europeia. Mas além do simbolismo, estamos diante de uma importante declaração sobre o estado do mundo protagonizado pela Rússia e pela China, que sempre desaprovaram operações militares ocidentais próximas das suas fronteiras. Pequim queixa-se das patrulhas navais norte-americanas, enquanto Moscou rejeita a expansão da Otan. Ao efetuarem exercícios conjuntos no Mediterrâneo, ambos os países mandam uma mensagem muito clara: se a Otan pode patrulhar perto das suas fronteiras, então, eles também podem patrulhar o coração da Otan. Russos e chineses pressionam para alterar a atual ordem mundial com base na ideia das "esferas de influência".

Os dois países acreditam que devem ter direito de veto sobre o que se passa nos países vizinhos”.

“A Rússia argumenta que é inaceitável que a Ucrânia – um país controlado por Moscou durante séculos – deveria se juntar à aliança do ocidente. A aspiração do governo Putin a uma “União Eurasiática” também parece ter a pretensão de re-estabelecer uma zona de influência russa na maior parte da ex-União Soviética – o que permitiria  então contrabalancear com os EUA. Até recentemente, a China dependia em primeiro lugar de sua força econômica para espalhar sua influência na Ásia. Porém, Pequim se tornou agora mais firme quando se trata de questões de segurança.

O país continua empreendendo suas disputas territoriais mais energicamente com vizinhos como o Vietnã e o Japão.No ano passado Pequim também declarou uma “zona de identificação de defesa aérea” no mar do leste da Chinainsistindo que aviões estrangeiros deviam se identificar previamente às autoridades chinesas”, diz o artigo.

No Ocidente, há quem defenda que se devem garantir tacitamente essas "esferas de influência" a Rússia e China em nome do pragmatismo e da paz.

Em uma entrevista recente para a Der Spiegel, Henry Kissinger deixou claro que acha razoável dizer à Ucrânia que não é livre para decidir seu próprio futuro.

O governo Obama, porém, se posicionou explicitamente contra essa ideia. Tony Blinken, conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, falou sobre as aspirações da Rússia: “Seguimos rejeitando a noção de esfera de influência. Seguimos nos colocando ao lado do direito das democracias soberanas de escolherem suas próprias alianças.”

Como as declarações de Blinken deixam claro, os americanos acreditam que o argumento sobre esferas de influência se baseia na defesa de um princípio fundamental.

Se for concedida uma esfera de influência a países não democráticos como a China e a Rússia, isso significa que passarão a ter, implicitamente, um veto garantido sobre as políticas de nações nominalmente independentes. Ou seja, a Rússia pode proibir a Ucrânia de aderir à Otan ou à UE; enquanto a China pode forçar o Vietnã, as Filipinas ou mesmo o Japão a submeter-se ao seu poder.

Para russos e chineses trata-se, fundamentalmente, de uma questão de poder e o "princípio" defendido pelos EUA não passa de hipocrisia.

Afinal, desde que a Doutrina Monroe foi anunciada, em 1823 - "A América para os americanos" -, que os EUA proclamaram sua intenção de manter forasteiros longe de  seu hemisfério.

Nas últimas décadas, só para citar alguns exemplos, os Estados Unidos intervieram militarmente na ilha caribenha de Granada, no Panamá e no Haiti. Mais recentemente - como os russos não se cansam de sublinhar -, os EUA intervieram longe da sua esfera geográfica, como no Iraque, Afeganistão e Síria.

Há tropas americanas no Japão e na Coreia do Sul, bases navais e aéreas no Bahrain e no Qatar, e bases da Otan por toda a parte na Europa – para citar só alguns dos mais visíveis acordos globais dos Estados Unidos.

A resposta norte-americana é a de que a sua presença militar global é alicerçada em alianças.. Para que não restassem dúvidas sobre a posição dos EUA, o secretário de Estado, John Kerry, declarou no ano passado que "a Doutrina Monroe está morta". Será que isso quer dizer que os EUA vão subscrever aquilo que um porta-voz soviético apelidou há tempos de "doutrina Sinatra": cada nação faz as coisas "à sua maneira"? (numa referência à música My Way)

Os governos russo e chinês não terão dificuldade em apontar inconsistências à rejeição das esferas de influência por parte dos EUA. Mas o argumento dos americanos ainda se apóia numa verdade básica: há uma grande diferença entre uma esfera de influência constituída por consentimento mútuo e uma esfera de influência construída pela via da força e da intimidação.

Parece quase uma regra que quanto mais um país se vê próximo de qualquer esfera de influência russa ou chinesa, mais desejo tem de estabelecer uma aliança com os EUA. Da Polônia até o Japão – e alguns pontos entre os dois – os aliados dos norte-americanos precisam de pouca persuasão para se abrigarem debaixo do guarda-chuva dos Estados Unidos.

A chegada da marinha chinesa ao Mediterrâneo no ano que vem só vai acrescentar mais pressão sobre a Otan”, encerra o artigo de Gideon Rachman, do Financial Times.