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Transição pacífica sul-africana põe Mandela ao lado de Gandhi e Luther King

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Direto de Nova York - Nelson Rolihlahla Mandela não apenas simbolizou a resistência ao regime de segregação racial do apartheid como liderou a bem-sucedida transição pacífica para uma ainda frágil democracia multirracial, num exemplo de refundação nacional. O heroísmo e estatura mundial de Mandela, vencedor do Nobel da Paz de 1993 juntamente com o último líder do apartheid, garantem um lugar no panteão de grandes lideranças em prol da liberdade no século XX, ao lado de Mahatma Gandhi e Martin Luther King, Jr.

Em abril, as últimas imagens divulgadas mostraram um Mandela enfraquecido e emudecido, aparentemente alheio aos acontecimentos e que se limitou a posar para fotos com o presidente Jacob Zuma e a equipe de médicos. Shaun van Heerden, seu guarda-costas nos últimos 12 anos, foi afastado recentemente do cargo após ser acusado de vazar à imprensa informações sobre a saúde de Mandela. Em entrevista à rede americana de TV CBS, Shaun, de etnia afrikaner, foi quase às lágrimas quando reclamou que Mandela estava sendo manipulado pelos médicos e preferia passar seus últimos momentos em casa.

Durante o encarceramento pelo regime do apartheid, iniciado em 1962, Mandela recusou todas as propostas de liberdade enquanto não dessem garantias incondicionais de que o país adotaria uma democracia integral. Foram 27 anos de detenção em condições muitas vezes solitárias e aviltantes, como o período em que fez trabalhos forçados na pedreira em Robben Island, atividade que contribuiu para problemas pulmonares nos últimos anos, bem como a tuberculose contraída na prisão.

Grace Davie, professora de história do Queens College, da City University of New York (CUNY), disse ao Terra que Mandela sempre será lembrado pelos muitos sacrifícios pessoais em nome da democracia. Como um dos primeiros advogados negros de Joanesburgo e líder comunitário, ele passou muitos anos longe da família e filhos, em viagens, e teve que entrar na clandestinidade enquanto construía o movimento do Congresso Nacional Africano (CNA).

Mandela também foi crucial para tornar o CNA uma organização ampla e baseada em esforços pacíficos como a Defiance Campaign, em 1952, em que sul-africanos se recusaram a cooperar com as leis raciais do apartheid, nota Grace. "Ele escolheu ficar preso mais tempo que necessário para garantir que todos os sul-africanos teriam a chance de participar na primeira eleição aberta e não-racial na história do país".

Grace afirma também que, além dos 27 anos de prisão, Mandela deve ser lembrado como alguém que soube "liderar da retaguarda," como ele mesmo definiu em sua autobiografia. Um exemplo disso foi a assinatura do Freedom Charter, em 1955, juntamente com o ANC, documento alcançado após um longo processo de negociação e consenso envolvendo vários grupos e que exigiu direitos econômicos e sociais para os negros.

Após ser libertado, em 1990, a atitude nobre de evitar o caminho fácil da incitação à vingança, como no Zimbábue, é admirada mundialmente como alternativa para combater um histórico de ódio com uma mensagem reconciliadora. “To forgive and forget”, ou “perdoar e esquecer”, foi a frase cunhada por Mandela para incitar seus compatriotas a deixar para trás o legado odioso do apartheid.

Conhecido em seu país pelo nome tribal Madiba, Mandela também é uma exemplo de ética para os africanos por deixar o poder após o primeiro mandato, diferentemente da grande maioria dos líderes do continente e reforçando a transição para um regime democrático de alternância no poder.

À semelhança de Gandhi e King, Mandela conseguiu liderar verdadeiras mudanças na sociedade por meio de resistência pacífica. A abrangência de sua mensagem é tamanha que muitos se questionam se apenas sua memória será suficiente para manter a paz na África do Sul, onde os brancos ainda detém muito poder mas já surgem os primeiros bilionários negros, fruto de uma política agressiva de reparação econômica nos últimos anos.

A permanência da desigualdade

Mesmo com alguns avanços na luta contra a desigualdade, o desemprego dos jovens do país beira os 50% e muitos bairros negros ainda carecem de saneamento e outros serviços básicos. Embora representem apenas 10% da população, os brancos continuam sendo os maiores beneficiados pela economia do país. 

A separação oficial do apartheid foi substituída por muros de arame farpado, cercas elétricas e seguranças privados isolando os membros mais abastados da sociedade sul-africana da violência que assola o país - segundo dados da ONU, a taxa de homicídios no país em 2012 foi de 31,8 por 100 mil pessoas, a 15a maior do mundo. Em comparação, a taxa no Brasil é de 21 homicídios para cada 100 mil habitantes.

O legado de Mandela

Patrick Lynn Rivers, professor visitante da Laurentian University, no Canadá, e autor do livro "Governing Hate and Race in the United States and South Africa" (2008), afirma que Mandela representa a transição do período colonial e de apartheid para uma sociedade mais democrática na África do Sul. 

O poder de liderança de Mandela transcende sua coordenação inicial do CNA, atual partido no poder, e da ala armada do movimento de 1961 até sua prisão. Segundo Rivers, Mandela foi crucial em unificar facções dentro e fora do partido, trazendo para a mesa de negociação líderes brancos e negros num esforço que permitiu o fim do apartheid.

Por outro lado, no livro “After Mandela: The Struggle for Freedom in Post-apartheid South Africa” (2012), Douglas Foster, ex-editor da revista “Mother Jones”, defende que o status quase santificado atingido por Mandela devido à sua história edificante também prejudicou uma análise apropriada dos problemas enfrentados pela África do Sul desde 1994, ano em que os negros votaram pela primeira vez.

Desde que se aposentou da política e da vida pública, em 2004, Mandela continuou simbolizando uma transição relativamente pacífica e uma imagem positiva da África do Sul para o mundo. Sua morte revelará como o país continua em transformação e alimentará o desafio de manter vivo seu ideal reconciliador de “perdoar e esquecer.”