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Precisa, cirúrgica, impiedosa, a lâmina de ‘Navalha na Carne’ penetra fundo no momento brasileiro

- Plínio Marcos vive! -

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Cercada de grande expectativa, chega ao Rio a montagem do Teatro Oficina da peça “Navalha na Carne”, com direção de Marcelo Drummond. A peça emblemática do autor “maldito” dos anos 1960, Plínio Marcos, vem para uma temporada de três semanas no Teatro Nelson Rodrigues, de 16 de agosto a 2 de setembro, sempre de quinta a domingo, às 19 horas. O texto não poderia ter chegado em melhor hora, com sua discussão sobre sedução, força física, humilhação e jogos de poder. 

Em 1967, em plena ditadura militar, o texto foi encenado pela primeira vez, causando grande impacto e comoção. Em cena, Tônia Carrero, Nelson Xavier e Emiliano Queiroz, dirigidos por Fauzi Arap. O autor Plínio Marcos, vivendo no Rio de Janeiro parte do seu tempo, marcando presença todas as noites na Fiorentina, onde a classe artística fervilhava naquele momento sócio-político vivido pelo Brasil. O país era outro, mas as tensões sociais, as mesmas. De lá para cá, passaram-se 51 anos. Porém, a obra de Plínio, em sua grandiosidade intelectual, permanece atualíssima, com seus personagens brasileiros únicos, marginalizados, em diálogos rudes, expondo a vida como ela é, nua e crua, marca registrada nos textos do autor.

Marcelo Drummond é Vado, um gigolô violento; Sylvia Prado é Neusa Sueli, prostituta decadente e explorada por Vado; e Tony Reis é Veludo, um homossexual que trabalha como faxineiro. Eles vivem juntos em pequeno quarto de cortiço, onde disputam de maneira bárbara o domínio do poder. Como em toda peça de Plínio, os três personagens revelam conflitos internos, fúrias, brigas, mas mantendo cada um seu aspecto poético. 

O repórter JOÃO FRANCISCO WERNECK conversou com dois atores da trinca protagonista, Marcelo Drummond e Sylvia Prado. Ambos enfatizaram a importância representada pela obra de Plínio para nosso Teatro. A crítica social escancarada, a língua sem rédeas, o mergulho no submundo dos cortiços, a violenta disputa por poder.

O que você, que já dirigiu outro texto do Plínio, vê de tão fascinante nos textos dele? 

Marcelo Drummond - Eu descobri o verdadeiro Plínio na “Navalha”, ali encontrei o poeta, no sentido dos ritmos, da fala, e não só da ação do personagem, e por tudo aquilo que é retratado na peça. Mas principalmente a linguagem que ele utiliza, muito interessante. Quando montamos “Navalha na Carne”, não havia grande pretensão quanto ao espetáculo, seriam apenas quatro sessões no SESI. Só que o público adorou, e aí nós levamos para o Oficina, que foi quando a peça pegou de vez. Depois disso, nós fizemos mais de 60 sessões. Então, foi com a “Navalha na Carne” que eu descobri o Plínio, um grande poeta, sarcástico, humorado, violento, característica que nós optamos por deixar de lado. Nós falamos na peça da violência contra a mulher, o gay, mas não é algo tão cruel, físico, quanto no texto.   

O que há de machista no seu personagem? Vado, seu personagem, é o opressor da peça? 

Marcelo - De fato ele é o opressor. Nós já tivemos apresentações em que, ao fim do espetáculo, naquele contato com o público, as pessoas evitavam falar comigo, me rejeitavam. Só queriam falar com a Sylvia, que está maravilhosa no papel. O Vado é um personagem que está em qualquer lugar, todos somos um pouco de Vado nessa sociedade patriarcal. Claro que ali há um exagero, uma exacerbação, mas a minha geração, sobretudo, sempre achou isso tudo normal, o papel do homem. E nós, atualmente, como sociedade, lutamos contra isso. Eu nunca fui assim, pessoalmente. Tenho até medo. Mas acho que todos nós temos um pouco. Então achar inspiração para o Vado foi fácil, basta assistir um Bolsonaro da vida, uma rede social, um discurso de ódio. Está em tudo quanto é tempo e lugar. E você vê: o Plínio denunciou isso…

A peça é ambientada em um cortiço, em 1968. Qual a semelhança dela com a realidade atual? 

Marcelo - Eu acho que os cortiços continuam por aí, não é?! Arrisco dizer que aumentou o número de cortiços. Quando eu comecei a trabalhar, eu tive medo do texto ser muito datado e precisar de algumas mudanças. Depois, nós optamos por não. Se mudássemos, aí sim o texto iria parecer datado. Uma contradição. E o que me interessava de verdade era a obra poética dele, a literatura. Só que o teatro é incrível. Na medida em que você faz o teatro, ele se torna contemporâneo, ele se adapta ao novo público, e aí ele passa a fazer sentido ao público. O texto é vivo. O texto é um clássico. Oswald de Andrade é vivo. Shakespeare é vivo. Então, o teatro transforma o texto, e faz dele atual. Na “Navalha”, encenamos um jogo de poder, que é um tema da nossa realidade, da nossa sociedade, ele existe até mesmo dentro das nossas casas.  

O teatro O?cina, ao encenar esta peça, propôs algo novo, ou diferente na montagem?

Marcelo - A gente procura manter elementos nossos, dos próprios atores do Oficina. Nós temos um estilo, que é apresentado na peça, mas a essência é do Plínio. Eu fui assistir à peça do Molière, com o Matheus Nachtergaele, e adorei, falei: “Nossa, é aquela coisa antiga”. Mas, não. Era teatro, atual, vivo. Não existe vanguarda, retaguarda. Teatro é antigo, tem milênios. Não foi nem a Grécia que inventou o teatro, mas foram as tribos, com comédias, histórias de medo... Então, nós temos o Plínio, um gênio nisso de fazer teatro, com textos que conseguem se manter atuais. E a peça não é presa a nenhum automatismo. O Vado é totalmente realista.

Qual a importância de levar esta peça para o Rio de Janeiro? 

Marcelo -  sou carioca, mas estou há muito tempo em São Paulo, eu só namoro o Rio à distância. Mas acho que, pelo momento que o carioca está passando, a peça chega em hora muito importante. E o meu problema é também com a Globo, eu nunca quis, como artista, fazer parte daquela influência. E eu sempre fiquei com um problema com o Rio de Janeiro por conta disso. Só que, depois do “Rei da Vela”, daquele sucesso, eu passei a namorar a cidade. Então, foi uma surpresa para nós conseguirmos trazer o “Navalha” através da Caixa Cultural. É muito difícil ser selecionado nos seus editais. E num momento que eu acho incrível. Vamos ver como os cariocas vão receber essa peça. Acho que a fala do Plínio é muito paulistana, santista. A peça é o Plínio.

Como foi fazer uma prostituta? O que faz da Neusa Sueli um personagem tão forte e atual?

Sylvia Prado - Não há nenhuma prostituta como a outra. Elas são múltiplas. É uma profissão absolutamente pessoal, e uma das mais antigas do planeta, de uma entrega absoluta, porque, se a prostituta não se conhece, ela não pode se doar para o outro. Mas cada puta é uma. Sobre a personagem, já foram feitas várias “Neusas”, de várias formas, e o legal de fazer a Neusa é fazer a prostituta dentro de casa, o que não é comum, porque o público nunca a vê ali, só no ofício. Ela é apresentada dentro da intimidade dela. O texto, da mesma forma em que é muito bruto, é também dotado de grande delicadeza. Ele revela toda contradição da personagem com a sua própria profissão. É a chance de fazer a voz de uma puta que nunca foi catalogada. Antes de ser puta, ela é uma mulher, essa é a Neusa Sueli.

Como foi trabalhar com o Marcelo como diretor? 

Sylvia - Foi uma experiência muito boa. Um trabalho minucioso em uma peça pequena, um trabalho praticamente de cinema. E ele é muito generoso em deixar o ator pesquisar as coisas, ir até o fim de uma frase, em esperar o tempo do ator para só depois colocar a visão dele como diretor. Um ator muito generoso, e também um diretor. Ele te dá um espaço de criação. O Zé Celso, do Teatro Oficina, também é assim, mas o texto do Zé é muito grandioso, e a encenação, às vezes, tem uma supremacia. O trabalho do Marcelo foi contrário a isso. A minúcia da atuação de um texto desses, como “Navalha”, em que ele priorizou toda a poesia do Plínio, a métrica da fala do Plínio, dessa linguagem que o Plínio desenvolveu, é muito rica. Tudo o que o Marcelo aprendeu de direção, nos tempos de Teatro Oficina, ele conseguiu impor nesse texto, e com plena liberdade ao ator.   

A peça é ambientada em Cortiço, em 1968. Qual a semelhança dela com a realidade atual?

Sylvia - O submundo retratado naquele quartinho de cortiço está expandido no mundo atual. São vários “cortiços” espalhados, estão na Câmara, no Senado, estão à procura de vices para se eleger… Eles são muitos, e espalhados pelo país. Há ali, na peça, naquele quartinho de cortiço, um nível de opressão muito grande, enquanto nós temos por aqui, na vida real, uma presidente que teve a voz suprimida no Congresso, ou uma jovem que foi alvo de brincadeiras indelicadas durante a Copa, foi escarnecida. São os Vados por aí, e eles estão escancarados, e não só no submundo, a não ser que vivamos no próprio. É muito difícil diferenciar. O cafetão é o político, e a Neusa é toda a classe teatral, a cultura do país, que está sucateada, é a Marielle assassinada. A impressão que eu tenho é que o submundo subiu. E o texto, como o próprio Plínio definiu em uma entrevista, corre o risco de se tornar um clássico, porque ele não se reduz mais a esses três papéis (o viado, o cafetão e a puta). Ele está acontecendo diariamente, em qualquer escala, e principalmente no alto escalão da vida cotidiana.  O texto não se restringe a esse quarto de cortiço.

Qual a importância de trazer esta peça para o Rio? 

Sylvia - Fazer o “Rei da Vela” no Rio de Janeiro, em abril, na Cidade das Artes, já foi uma das maiores experiências que eu tive como atriz. Talvez pelo momento atual da cidade, esta tenha sido a peça mais forte que eu fiz. Eu senti o espetáculo não apenas como uma realização artística, mas como uma apresentação política. Uma representação de um desejo coletivo de transformação. Fato é que os contrastes no Rio de Janeiro são muito fortes, mais definidos. E fazer o espetáculo “Navalha na Carne” agora, neste momento, é político, tem o poder de transcender os arquétipos dos três personagens e tocar em fatos cotidianos, que acontecem diariamente na cidade. Quando estive no Rio, eu me deparei com uma cena insólita de soldados, num jipe, na orla do Leme, uma coisa surreal. Meu desejo é dar sequência ao que foi feito no “Rei da Vela”, dar continuidade àquela discussão. A possibilidade é falar de tudo o que nos incomoda através do texto teatral. A arte escancara os fatos, e apresenta também uma virada. Esse é o desejo de fazer essa peça. Transformar a cidade com a arte.  

O teatro O?cina, ao encenar esta peça, propôs algo novo, ou diferente na montagem? 

Sylvia - Vai ser totalmente diferente porque a montagem original aconteceu em uma época de outro submundo. A qualidade do Teatro Oficina, dos três atores envolvidos com a peça, faz com que nós tentemos descobrir o que há de novo em cada texto, e isso vale para cada vez que em ele é representado. Isso vale para esta Intervenção Militar, que acontece agora, e pelo que a gente vai encontrar no Rio de Janeiro, sobretudo diante deste público imenso, de 400 pessoas. A ideia é que ela seja única sempre que é apresentada. Marcelo trouxe a esta direção a poesia do Plínio.  Nós tentamos falar e interpretar o texto dele da maneira como está escrito. Acho importante falar do figurino, feito pela Vera Valdez, que leva luxo ao submundo. Uma visão avessa aos estereótipos de um cortiço. Tanto a Vera quanto o Marcelo levaram a peça para este caminho, da riqueza, do luxo, do glamour do submundo, é quando o requinte se encontra com a selvageria. Essa é uma qualidade do Oficina, que a gente carrega no nosso sangue. 

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CONTRA A VOLTA DA FOME, a perda de direitos e em defesa da liberdade de Lula, os grevistas da fome, no Centro Cultural de Brasília, Vilmar Pací?co, Zonália Santos, Luiz Gonzaga, Rafaela Alves, Jaime Amorim e Frei Sérgio Görgen, completaram ontem seis dias sem qualquer alimento sólido. Segundo o dr. Robert Wolff, que os acompanha, as pessoas perderam de 2.1kg a 5.6kg de peso.