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O português ameaçado

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O Brasil acaba de transferir ao Cabo Verde o comando da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, o que exigiu do presidente Michel Temer, que então a comandava, um breve pulo sobre o Atlântico para formalizar o ato solene. Tão poucas horas, nem necessidade havia de passar o cargo à sucessora natural, ministra Cármen Lúcia. A essa Comunidade, que por tanto tempo acalentou os sonhos do embaixador José Aparecido, é justo creditar progressos no intercâmbio de conhecimentos e experiências no comércio e na cultura; em particular, quando se trata de avaliar a aproximação do Brasil com os povos africanos em que se fala o português, sem que lhes falte a contribuição dos sotaques do regionalismo.

A entidade, contudo, continua a dever incursões mais produtivas na defesa daquele que é seu maior patrimônio, o idioma. O português, mesmo que figurando entre os mais falados do mundo, tem carecido de iniciativas dos governos e das instituições culturais para divulgá-lo e, acima de tudo, preservá-lo, pois, como ensinava Ruy, o povo que perder o domínio da língua, nada mais tem a perder. Porque os falares dos povos sofrem depredações, como qualquer outro bem, ou acabam infestados pelas expressões importadas na rota do modismo. É preciso, sem exageros xenófobos, resistir à invasão de termos estrangeiros. Entrega não é “delivery”, venda não é ”for sale”.

Uma lei que se originou de projeto do ex-deputado Aldo Rebelo, limitando os estrangeirismos, continua reservada e virgem, sem qualquer intenção de fazer-se cumprir. Advogava-se o estabelecimento de normas mínimas para que o jeito de nos comunicarmos não sucumba de vez. Virou assunto morto. Sem algum instrumento capaz de defender esse jeito, dentro de pouco tempo, com todas as placas do comércio em inglês, quem não dominá-lo ficará confuso diante de qualquer pastelaria de subúrbio.

Mas no trato dessa questão, sem que se declare guerra total a qualquer palavra que venha do exterior, o objetivo há de ser a preferência pelas expressões nacionais. Hoje, não é conveniente nem seria possível, num mundo globalizado, optar por atitudes radicais ou seguir as pegadas de Eça: “Falar, com impecável segurança, apenas a língua da sua terra; todas as outra deve falar mal”. E, em se tratando do português, vale considerar sua intimidade com a História brasileira. É uma herança, que a inconveniência da colonização bruta não seria suficiente para empanar. Nesse passo, melhor é aclamar o idioma como “bem precioso que une povos que o mar separa, mas a afetividade aproxima”, no dizer de Virgílio Ferreira.

No momento em que está aceso o debate sobre a conveniência de temas políticos nas salas de aula, seria desejável que professores e pedagogos considerassem que, naquelas mesmas salas, prestarão serviço relevante ao se esforçarem em defesa dessa língua, que se tem como a última flor do Lácio. Fariam bem, até porque são esses educadores, melhor que qualquer pessoa, que podem confirmar a pobreza que emerge das conversações e dos textos, um mal que os jovens trazem do ensino médio para consolidá-lo nas universidades. Não se trata apenas de arranhões nas concordâncias e na ortoépia, mas a própria limitação da linguagem para expressar ideias. Tem alguma culpa a internet, cruel inimiga das leituras, além de inventora de fórmulas sintéticas de intercomunicação, como enganadora alternativa para se evitar perda de tempo. 

A Comunidade, agora sob a presidência de Cabo Verde, pode contribuir para blindar o português contra as crescentes agressões; mas sem que se perca de vista que na escala de responsabilidade ante tal problema, Brasil e Portugal estão em primeiro lugar. Tudo concorre para que não se desviem desse dever.