ASSINE
search button

O recado da ministra

Compartilhar

É justo que, neste momento de incertezas acumuladas, seja consignado o reconhecimento de todos à manifestação da ministra Cármen Lúcia, na instalação da última sessão do Supremo Tribunal Federal. O que se ouviu foi uma profissão de fé, que ganha vulto e importância, eis que na presidência da mais alta Corte da Justiça, ela repele e condena o assanhamento dos golpistas improvisados, que hoje advogam imediata interferência militar nos poderes constituídos. Fez bem a ministra em espantar detratores da democracia, esse imenso valor que “não está em questão”, segundo suas palavras textuais. Nesse sentido, adverte, ainda com sensibilidade diante do momento que vivemos, que “a democracia é o único caminho legítimo”. Eis o bastante para condenar à ilegitimidade o espírito aventureiro dos façanhudos, empenhados, criminosamente, em soprar as cinzas de ditadores, para ressuscitar desastres sepultados no passado. 

Nem a ministra Cármen Lúcia nem os brasileiros de bons princípios têm saudades do que não andou bem em nossa História recente.

O JORNAL DO BRASIL, como não negarão todos que acompanham nossas convicções, sabe que a defesa de uma sociedade livre é o exercício de verdadeiro sacerdócio, diariamente celebrado e consolidado nas posições assumidas. O jornal, olhando no retrovisor de suas longas jornadas, recentemente reanimadas, recusa-se a admitir que tudo esteja perdido ou em vias de se perder. Mais ainda agora, quando, do tribunal maior, ecoa uma voz de confiança no caminho reto, sem curvas e sem atalhos na preservação dos primados da democracia e da civilização.

Não podia ser mais oportuna a intervenção da ministra Cármen Lúcia. Sua voz se alevanta no momento de devaneio de alguns preocupados em estreitar os espaços que se abrem ao Brasil para vencer as crises geradas por volumosos problemas que afetam a vida nacional e que doem cada dia mais. Algumas pessoas, felizmente longe de serem em número expressivo, têm ido às praças e aos jardins para reivindicar intervenção política dos militares. Consideram algo urgente, de indiscutível eficácia. Mesmo poucas, são tonitruantes em suas manifestações. Entendem ser esse o remédio para suas aflições; não acreditam em luz no fim do túnel, pois já nem mesmo no túnel são capazes de acreditar. Não há como impedi-los, pois gozam da mesma franquia que não teriam no governo de seus sonhos. Desejável, então, que tomem a bênção da ministra Cármen Lúcia, que, ontem, em poucas palavras, falou sobre a única rota se deve seguir.

Metade desse reduzido contingente é formada por saudosos do regime de força; a outra metade se compõe dos mais jovens, aos quais cabe devotar um grau de piedade, por ignorarem o que foi o Brasil no Estado Novo e no golpe de 64, e o que custaram à liberdade aquelas quadras. E se o relato dos livros e dos jornais compromete a visão distorcida que alimentam sobre aquelas experiências, preferem encerrar o assunto, alegando que papel aceita tudo. Paciência, ministra.

O equívoco fundamental desses radicais é desconhecer que não há intervenção militar numa organização política que não seja pela via da força da ditadura, que se debate com os mesmos problemas que a democracia enfrenta; ressalvada a diferença de as coisas desagradáveis serem mantidas em segredo, sob o clima da excepcionalidade. O fato de muitos chefes fardados serem homens pessoalmente honrados não serve como contradita, porque nunca tiveram eles o condão de impor a honorabilidade a todos que servem ao governo. Quando se fala na distribuição de vantagens, no combate à corrupção, no desvio de obras reclamadas, nenhum daqueles homens severos teve como impedi-las; quando muito, conseguem inibi-la. Sobre tal constatação os golpistas preferem fazer ouvidos de mercador. Paciência, ministra.

Os ditadores não podem governar sem a participação, ainda que modesta e subserviente, dos políticos que abrem mão de sua natureza civil e fazem de conta que vestem a farda do momento. Por se prestarem ao singular papel de acólitos, fora do altar e sem sacramentos, já é o suficiente para mostrar que não figuram entre personalidades de primeira ordenha. 

Significa, portanto, para frustração de quem deseja a reedição do golpe, que o intervencionismo militar não conseguiria, por si só e tão somente, mandar os problemas se apresentarem ao oficial de plantão; ainda que contasse com a boa vontade e boas intenções dos gestores. Porque, na vida de uma nação, ainda que bem intencionado, o que é mau é mau mesmo.

Os advogados do golpismo não têm direito à presunção de achar que, com Vargas e com os generais dos anos 60, 70 e metade dos 80 do século passado, a vida do país correu sem problemas, como estariam a indicar as raras manifestações hoje descontentes. As dificuldades, simplesmente, eram substituídas pelo flagelo da censura imposta aos meios de comunicação. Porque naquelas épocas, como ocorreu em outras semelhantes, a censura sempre foi a antevéspera da democracia sacrificada (a jovem estuprada e assassinada pelo filho de um ministro da Justiça não foi fruto de ficção nos anos 60. Foi uma realidade amordaçada). Apenas um exemplo.

O Brasil não precisa sair do caminho das instituições respeitadas. Não deve sair, pois já ficou sabendo que custam caro, muito caro, os acidentes de percurso.