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Instituições colocam ANS em xeque. Em cinco anos, alta dos boletos foi 123% superior à inflação

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Desde que foi criada, há 20 anos, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) não tem um ano tão conturbado quanto 2018. Em menos de três meses, a reguladora já foi questionada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), pelo Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC) e, nos últimos dias, pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ministério Público Federal (MPF) e Supremo Tribunal Federal (STF). Ligado ao governo, o órgão chefiado por Leandro Fonseca está cada vez mais isolado. Esta semana, a ministra Cármen Lúcia suspendeu a Resolução Normativa nº 433/2018, que fixa novo teto de 40% para franquias ou co-participações em planos que preveem tais cobranças, que podem chegar a até 60% no caso das modalidades coletivas. Os representantes das operadoras de planos, como Abramge e Fenasaúde, que tanto pressionam nos foros internos, se limitaram a dizer que a lei deve ser cumprida e que não lhes cabe reagir na Justiça. Quem faz o trabalho e desgasta sua imagem perante os consumidores é a ANS. 

Tudo começou com o teto do reajuste de planos familiares e individuais que, depois de uma disputa judicial com o Idec, terminou fixado em 10%, índice muito superior à inflação acumulada do ano válido para a  saúde suplementar (maio-abril), que ficou em 2,76%. Os aumentos sempre foram superiores ao IPCA, mas, nos últimos cinco anos, o descolamento aumentou muito. Entre 2014 e 2018, a alta acumulada foi 123% superior ao impacto da inflação no mesmo período. 

A discussão, no entanto, afeta apenas 9,3 milhões de pessoas, cerca de 20% dos 47,6 milhões de usuários de planos de saúde que o Brasil tem hoje. Por isso, o aumento do limite das franquias e participações, por exemplo, é muito mais sensível ao negócio das operadoras: afeta mais da metade do total de beneficiários, cerca de 24,7 milhões de pessoas. Com a oferta de mensalidades mais baratas e a exigência de pagamento por procedimento, o número de contratos nesse modelo praticamente triplicou nos últimos 12 anos. De acordo com a ANS, a nova norma foi uma tentativa de oferecer regras claras, como limitação do valor de uma franquia ou coparticipação ao valor de uma mensalidade ou equiparação do conjunto de taxas a 12 mensalidades e fixação de um limite de 40% para as cobranças extras. Mas, na prática, a última novidade valeria como mais um aumento, já que, antes, a agência recomendava um teto de 30%. 

Em um plano individual com franquia ou coparticipação, haveria um aumento duplo, gravando uma situação já abusiva. Segundo a própria ANS, para uma pessoa na faixa etária entre 44 e 48 anos, o valor médio da mensalidade de um plano como estes variou de R$ 286,32, em janeiro de 2013, para R$ 492,61 em dezembro de 2017, um encarecimento de 72,04%. 

Independentemente do modelo de contrato, o preço aumentou significativamente no período. O caso mais grave é o dos planos individuais sem fator moderador, cujos preços médios subiram 84%. A escalada explica a evasão deste tipo de plano e o crescimento dos coletivos por adesão. Segundo a reguladora, estes valores são apenas uma referência. Na realidade contam com uma margem de erro de 30% para cima ou para baixo. 

Um ano de disputas judiciais 

A lista de inconsistências nas decisões da agência é longa. A última mereceu que o Conselho Federal da OAB entrasse com uma ação constitucional no Supremo, a gota d’água para um desconforto acumulado há meses pelos conselheiros de Ordem com relação ao noticiário dos planos de saúde. A acusação dos advogados é nova. Nada tem a ver com a falta de transparência no recolhimento dos dados das operadoras e nem com as falhas no cálculo dos reajustes, que o Instituto de Defesa do Consumidor vem apontando desde maio. “Nosso espectro de argumentação é bem mais reduzido e objetivo. Tentamos comprovar que houve descumprimento da Constituição”, explica o assessor jurídico da presidência da OAB Bruno Lopes. Na prática, não é uma discussão sobre os métodos em si, mas sobre os limites de competência da agência. 

Em poucas palavras, a OAB tenta comprovar “abuso de poder e desvio de finalidade da ANS”. Enquanto reguladora, a agência deveria se limitar a fiscalizar, ampliar a livre concorrência e proteger o consumidor. A criação de novas modalidades de serviço, segundo os advogados, é atribuição do Conselho de Saúde Suplementar (CONSU), um órgão colegiado ligado ao Ministério da Saúde, cujas decisões não têm aplicação direta. Devem passar pelo Congresso para ganhar poder de lei. 

Apenas três dias depois de protocolado, o argumento foi acolhido pela presidente do STF que suspendeu a “norma dos 40%”. A questão será analisada pelo conjunto em agosto, na volta do recesso, quando as chances de novo acolhimento são boas. Em certo ponto da decisão, Cármen Lúcia reproduz um trecho de voto antigo, seguido pela maioria da turma, em que sugere a “necessidade de intervenção do Judiciário para a garantia do núcleo do direito essencial à saúde”.

 No mesmo dia da decisão, o Ministério Público Federal enviou um ofício à ANS solicitando “mais informações sobre a existência de estudos, pesquisas ou levantamentos sobre o impacto da norma para os usuários. “O MPF está atento ao potencial lesivo das regras contidas na Resolução 433/2018, que, se mal dimensionadas, poderão repercutir na continuidade do tratamento de saúde e no endividamento dos consumidores, afirmou o subprocurador geral da República Augusto Aras, que assina a peça.

“A ANS age como se fosse parceira de seus regulados. Certamente esse patamar da parcela a ser paga pelos consumidores em cada procedimento foi definido por influência das empresas. A experiência mostra que, embora esses 40% sejam anunciados como limite, tendem a virar um padrão. As mensalidades poderiam diminuir, mas depois o custo efetivo poderia ser muito mais alto”, explica Lopes. A norma tem um prazo de 180 dias para entrar em vigor, mas renovações de contrato já poderiam acolher as mudanças. Por isso, a ministra entendeu a questão como urgente. “Só o consumidor perderia agora, as empresas não. Muitos poderiam se sentir pressionados a deixar os planos”. 

Com cada vez mais consumidores abandonando seus planos em função dos preços, altas desse tipo têm sido chamadas pela Defensoria Pública do Estado do Rio de “aumentos expulsórios”. Até hoje, segundo a OAB, coparticipações e franquias, criadas sob o argumento de tornar o consumo mais prudente, ficavam entre 10% e 30% do preço de cada procedimento. Pesquisas patronais realizadas em todo o mundo falam em uma média de 23%, o que ainda é quase metade dos 40%. A ANS se queixou, em nota, de não ter sido previamente ouvida pelo Supremo e ressalta que respeitou os ritos, “especialmente quanto à oportunidade de participação da sociedade”. Não é o que pensa o Idec. Após conseguir postergar o aumento das mensalidades  por cerca de um mês e meio, o órgão se desligou da Câmara de Saúde Suplementar (CAMSS) há pouco mais de uma semana. 

“Lamentavelmente, a absoluta falta de compromisso institucional da ANS com os interesses mais fundamentais e básicos dos consumidores, sua crescente captura pelo setor regulado e a triste realidade que nos faz assistir às indicações de novos diretores para a Agência, em flagrante violação ao princípio da moralidade, são evidências que tornam a Câmara de Saúde Suplementar um espaço inócuo para contribuir”, informou o Idec na carta de desligamento. 

No mesmo dia do afastamento, o Senado Federal realizou audiência pública para discutir o novo modelo de planos de saúde por coparticipação ou franquia, mas nem o presidente interino da ANS, Leandro Fonseca, ou membros da cúpula da agência estiveram presentes. Por mais de uma vez ao longo deste ano, o JORNAL DO BRASIL  tentou contato direto com técnicos da reguladora para o esclarecimento de questões como a caixa preta dos aumentos e não obteve sucesso. A sensação da institucionalidade que ronda o governo não é outra senão que a agência só aparece para a sociedade civil quando intimada em liminares. Nos dias 24 e 25 de julho, uma nova chance: a ANS realizará audiência pública para debater a metodologia de cálculo do teto do reajuste de planos individuais ou familiares. O evento acontecerá no Auditório da Secretaria de Estado de Fazenda e Planejamento do Rio de Janeiro, no Centro do Rio.