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João Donato apresenta clássicos de 'Quem é quem', álbum desprezado pela gravadora há 45 anos

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Pianista, acordeonista, arranjador de grandes nomes do jazz e da MPB, compositor consagrado e cantor, João Donato bem que merecia dar nome a um teatro. Às vésperas de completar 84 anos, responde pela direção artística da Sala Baden-Powell, em Copacabana, um dos espaços culturais mais pulsantes do Rio. Um lugar que reúne música, teatro e cinema para todas as gerações. Cultura que cabe no bolso também, pois os ingressos tem preços convidativos. No próximo sábado, Donato sobe ao palco da Baden-Powell para um espetáculo de resgate. Vai interpretar na íntegra e em sequência o álbum “Quem é quem”, de 1973, que marca a sua volta ao Brasil após 13 anos nos Estados Unidos, marcados por uma imersão no jazz e sua fusão com ritmos latinos,o que lhe rendeu encontros musicais com Tito Puente, Johnny Martinez e Chet Baker, entre outros. O espetáculo abre o projeto Discos Históricos da MPB.

Primeiro trabalho de Donato com letras em suas canções e apontado pela revista “Billboard” como um dos cem  melhores discos de MPB, “Quem é quem” não teve reconhecimento na época. A gravadora Odeon não disponibilizou verba para qualquer tipo de lançamento e o artista, num gesto de rebeldia, promoveu por conta própria, atirando os discos do alto do Outeiro da Glória - um lançamento literal. A pedido do JORNAL DO BRASIL, o compositor voltou ao local e concedeu entrevista na qual conta os bastidores deste disco com pecha de maldito, mas que o aproximou do grande público. 

Fala ainda e sua carreira, seus projetos como gestor cultural e como funciona seu processo criativo. “Nestes mais de 70 anos em que faço música, cheguei à conclusão que compor é como se você estivesse fazendo um suco com várias frutas, uma vitamina! Os acordes são como frutas que você vai dosando, com umas gotas de baunilha aqui, uma pitada de canela ali, uma boa dose de açaí e você tem um refresco maravilhoso”, compara.

JORNAL DO BRASIL - Com 45 anos de atraso, o sr. está fazendo o (re)lançamento do álbum “Quem é quem”, de 1973. Sabemos que na época a gravadora não disponibilizou verba para divulgar o trabalho e sua resposta foi vir aqui no Outeiro da Glória promover o disco numa ação inusitada.

João Donato - Pois é, cheguei todo contente e animado para falar com o departamento de divulgação e saber como seria o lançamento do meu disco. Afinal, eu tinha passado mais de dez anos nos Estados Unidos, tinha tocado nas orquestras que os músicos queriam tocar, feito música com os caras do jazz, do latin jazz, com os melhores músicos do mundo daquela época. Cheguei no Brasil de volta e todo mundo queria tocar comigo. E depois “Quem é quem” foi o meu primeiro disco com letras, até então eu só tocava instrumental. Cheguei todo contente e alegre e recebi um enorme não. “Não, o seu disco não vai entrar nesse esquema”, lembro bem desta frase. E eu, que me considero muito emotivo, engoli em seco e me perguntei: “Existe outro esquema?”. Saí dali cabisbaixo e encontrei com o meu amigo de copo e no samba “Leitão com farofa”, Jota Canseira (jornalista), e ele me aconselhou: “Se eu fosse você, pedia uma caixa de cortesia lá na gravadora, pegava os discos de dentro das capas e atirava para cima, feito discos voadores.” E foi o que eu fiz. Chamei a Paula Saldanha, da antiga TV Globinho (programa infantil da TV Globo, muito popular nos anos 1970), e falei: “É agora!”. Eu ia tirando os discos das capas e arremessando daqui de cima. E o pessoal correndo para pegar os discos “voadores” (risos).

Este álbum é bem expressivo em sua carreira, pois foi a primeira vez que seus temas ganharam letras. E com parceiros de peso, entre os quais Paulo Cesar Pinheiro e Geraldo Carneiro, e produção de Marcos Valle. 

É... o fato é que a gravadora desprezou um dos discos que eu mais gostei de ter feito. Todo arranjadinho, com produção do Marcos Valle e só a nata da música instrumental: maestro Gaya, Helinho Delmiro, Novelli, Laércio de Freitas, Dacy, Dori Caymmi, Ian Guest, uma rapaziada da pesada! O estúdio já estava reservado. Então foi aquele corre-corre para as letras. Juntou tudo que é compositor, poeta para escrever. Reunimos um time de primeira: João Carlos Pádua, Dorival Caymmi, Geraldo Carneiro, Lysias Enio, Marcos Valle e Paulo César Pinheiro. Com exceção do meu irmão, Lysias, todos já eram grandes compositores. Eu fui na casa dele e gravamos as mesmas músicas em várias fitas cassete e eu saí distribuindo pro pessoal. Foi um tal de música com mais de uma letra! Vários fizeram letra para “Até quem sabe”, até o Dorival Caymmi. Mas o próprio velho Caymmi, depois de ouvir, preferiu a do meu irmão.

Foi o Marcos Valle quem te provocou a pôr letras nas canções? 

Na verdade, foi o cantor Agostinho dos Santos quem reclamou. “Marrapaz, você vai gravar outro disco instrumental? Se não botar letra, os cantores não cantam! Como é que a gente vai chegar no ouvido das meninas?”.

Como foi começar a cantar? 

Na hora em que eu tive que cantar no estúdio, me deu um certo pânico, como uma apresentadora de TV que se preparou para pular de bung jump e, quando chegou a hora,  perdeu a coragem: “Para que eu fui concordar em cantar” (risos).  Eu até cantava em conjunto vocal nos meus 18 aninhos, mas, cantar para as multidões, nem passava na minha cabeça. Eu tinha uns amigos em Paracambi que me chamavam de pardal, porque apelido de cantor é canário. Eu dizia: “Eu tô dando uma de canário”. E eles devolviam: “Que nada, você é um pardal, cara, uma cambaxirra”. Talvez porque a minha voz não tinha comparação com a de nenhum cantor, mas de um passarinho que tem o canto mais curtinho. 

BOSSA NOVA FOI CASUAL

O sr. pertence à geração dos ícones da Bossa Nova, estava muito próximo do movimento e foi amigo de todos os ícones do gênero como Tom, Vinicius, João Gilberto e Johnny Alf.  

A Bossa Nova aconteceu como hoje acontece em qualquer apartamento, botequim, sarau, jam session em que uns garotos estão mostrando uns para os outros o que conseguem fazer nos seus instrumentos, as letras de músicas “geniais” que estão compondo. Na verdade, ninguém se reuniu e disse: “Vamos fazer uma coisa nova?”. Foi um acontecimento casual. E ninguém estava atrás de batida nenhuma. A gente queria era ser feliz, se divertir e conquistar as garotas. Não dava para conseguir namorada aos 18 anos cantando coisas como “Você vai rolar como as pedras na estrada e nunca terá um cantinho seu”. Era um tempo em que a música falava muito de vingança. E nós queríamos mesmo era “um cantinho, um violão, um amor, uma flor, um barquinho, uma canção...” (cantarola). Mas eu sempre toquei meio esquisito, tanto é que fiz uma viagem para São Lourenço, aquelas águas termais, em um hotel, a convite do João Gilberto, que disse pro dono do hotel: “Eu só vou se o Donato for”. Naquela época, a gente andava junto 24 horas por dia. Um tocava uma coisa, o outro complementava, a gente fazia música e nem sabia quem era o autor. Era um bando de garotos experimentando coisas. Pois neste hotel, o nosso jeito de tocar causou estranheza no dono do hotel, que depois do primeiro show nos chamou e disse: “Vocês não precisam se preocupar com a conta do hotel, podem ficar a temporada inteira, tudo por minha conta, mas não precisam mais tocar” (ri). Foi estranho, pois a nossa música não era aceita nem no Rio, pois só podíamos tocar depois que a atração principal tinha acabado o show, isso madrugada adentro. Estranho porque hoje a Bossa Nova é hoje  apreciada da Ásia à Oceania.

Desde os cinco anos, o sr. tocava acordeom em Rio Branco. E, aos 12, já no Rio, o Ary Barroso não quis lhe ouvir em audição para o programa de auditório. Foi isso mesmo?

É, a minha família logo cedo notou que eu tinha talento e o meu pai – desde que viajamos do Acre para o Rio de ita – me colocava em contato com os músicos no navio. Chegando no Rio, ele logo conseguiu uma oportunidade para eu me apresentar, tocando acordeom no programa de rádio da Tupi “Calouro em desfile”, apresentado pelo Ary Barroso, que mandava tocar um gongo quando o candidato desafinava. Pois eu nem gongado consegui ser. Quando entrei no palco, ele foi logo dizendo “Não gosto de meninos-prodígio” e mandou aquelas assistentes me retirarem do palco.  Eu fiquei triste na hora, mas a minha admiração pelo Ary compositor não diminuiu. Tanto é que a música que eu gostaria de ter feito é “Aquarela do Brasil”, uma beleza!

Um pouco depois, aos 15 anos, o senhor participou do Sinatra-Farney Fã Clube, na casa do Dick Farney. Mais do que um fã-clube, o grupo foi uma incubadora de talentos... 

Era na Tijuca o Sinatra-Farney Fã Clube, onde passávamos horas escutando os discos que chegavam às lojas ou do exterior. Discos dos nossos ídolos da América ou brasileiros, trazendo gravações que ouvíamos nos filmes, no cinema, ou nas rádios. Frequentavam o clube Paulo Moura, João Gilberto, Johnny Alf, Carlos Manga, Jô Soares, uma turma que a gente pode chamar de pré-Bossa Nova. Foi dessa leva de parceiros que eu gravei o meu primeiro disco como líder de grupo, “Chá dançante – Donato e seu conjunto”, a convite do Tom Jobim, que era o diretor da gravadora. E qual era o meu conjunto? (risos): Tom Jobim no piano, nas faixas em que eu tocava acordeom, Paulo Moura no saxofone, e Altamiro Carrilho na flauta! 

Em “Chega de Saudade”, o jornalista Ruy Castro conta que uma situação acidental lhe fez trocar o acordeom pelo piano. Como foi isso?

Tive um acordeom roubado de dentro de um carro, onde eu deixei o instrumento à noite. Com preguiça de levar pra casa, deixei ele dentro do carro do Nanai (do conjunto da Carmem Miranda) e o carro não fechava as portas, então, no dia seguinte, o acordeom não estava mais lá. Aí, não me restou outra saída senão trocar pelo piano. Então, eu vi que era até mais cômodo: eu não precisava de instrumento, o piano já estava nos lugares em que eu ia tocar.

O piano também é de teclas e imagino que a velocidade do acordeom tenha lhe trazido algum benefício técnico... O senhor estudava teoria musical, tinha aulas dos instrumentos ou era autodidata? 

Eu e o meu irmão mais novo, Lysias, ganhamos uma sanfoninha de Natal. Ele abriu o brinquedo com tesoura para ver o que tinha dentro. E eu saí tocando “Cai, cai, balão”. Isso eu tinha uns quatro ou cinco anos. Logo em seguida, minha irmã Eneyda – três anos mais velha – ficava estudando piano na sala. Eu acordava com aquele barulhinho de estudos de Hannon (faz vocalize), frequentava aquelas festinhas do interior, nos sábados e domingos, e  queria tocar com os músicos e, quando vi, estava tocando as teclas do piano. Depois, meus pais viram que eu tinha jeito e me deram um acordeom de 24 baixos, então comecei a tocar para valer. Um dia aprendi uns acordes de cavaquinho, escutava a música tocando no rádio e já saía tocando. Anos mais tarde, no Rio, tive de aprender a ler e a escrever música com uma professora e arranjo com o “Tio”, o maestro Laércio de Freitas.

O sr. teve um romance com Dolores Duran e todos sabemos em que circunstâncias terminou (ela era mais velha e o relacionamento não foi bem aceito por tua família). Mas o que gostaria de saber é se nesse período vocês nunca compuseram nada juntos. Ou se pensaram a respeito. 

Nos apaixonamos de tal forma que tinha de namorar (risos). Realmente tive um noivado com a Dolores, depois não deu certo, mas nós nunca pensamos em compor nada juntos. Nós nunca tivemos essa ideia de eu fazer uma música e ela, uma letra. O que começou a acontecer depois, quando nós já não éramos mais namorados, foi que ela começou a escrever música com Tom Jobim.   

O que o levou aos Estados Unidos? Imagino que tenha sido um período de muita riqueza musical. Foi quando o senhor se aproximou dos ritmos afrocubanos que até hoje é a sua grande influência musical. Fale ou pouco desse encontro musical e quais foram suas maiores influências para fazer sua música a partir de então?

Eu fui para os Estados Unidos em busca do jazz, porque a música que eu, João Gilberto, Paulo Moura, a rapaziada fazia não era bem aceita. A gente só tinha espaço para tocar nos lugares de madrugada, depois que a atração principal tinha acabado e a maior parte do público ido embora. A gente tocava para nós mesmos, as boates vazias. Chegando na América, entrei pela Califórnia, ia nos lugares do jazz, que eram poucos, e falava com os músicos, perguntando onde é que se encontrava mais jazz. E eles respondiam: “Não tem, o que tem é isso mesmo, segundas-feiras à noite em lugares pequenos, os músicos de jazz estão todos trabalhando nas orquestras latinas, como Tito Puente, Perez Prado, Machito, Eddie Palmieri, Johnny Martinez”. Então, acabei me voltando para as orquestras latinas e a maior parte do tempo que passei lá foi praticando com esse tipo de música. Acho que é por isso que a música afrocubana tornou-se uma forte influência no meu jeito de compor, de tocar, de fazer arranjo. Bem, até que chegou a Bossa Nova aos Estados Unidos, eu já estava lá enturmado com os músicos de jazz, com os cubanos, os porto-riquenhos. Então, foram chegando Tom Jobim, Astrud Gilberto, João Gilberto, Caymmi e eu passei a tocar com eles. Mas eu toquei, compus, fiz arranjo para Tito Puente, Mongo Santamaria, Eddie Palmieri, a orquestra de Johnny Martinez. Cheguei a ter no meu conjunto o Chet Baker...mas aí é outra história.

Houve um tempo em que o senhor atuou como arranjador de álbuns de jovens artistas como Gal Costa e Gilberto Gil. Falando em Gil, recentemente eu soube que “A paz “ nasceu de um passeio de vocês dois pelo Jardim Botânico... Como é o seu processo criativo? 

Não tem um processo criativo. Ou se tem um processo criativo, ele não tem realmente uma fórmula. Na verdade, “A paz” nasceu de uma visita que eu fiz à casa dele e pedi a ele uma letra que falasse sobre paz, calmaria, e ele me disse que não tinha tempo. Eu, com jeitinho, fiquei insistindo e dizendo que dava tempo sim. Ele disse que tinha só meia hora pois tinha um compromisso. E eu fiquei quietinho, até que peguei no sono no sofá. E quando acordei ele tinha escrito aqueles versos lindos “A paz, invadiu o meu coração. De repente me encheu de paz”... o Gil é genial... Uns 25 minutos depois que eu cheguei, ele me perguntou “e aí, o que você acha?”. A Zizi Possi gravou e virou um clássico. Nestes mais de 70 anos que eu faço música, cheguei à conclusão de que compor é como se você estivesse fazendo um suco com várias frutas. Uma vitamina! É só misturar um dó com um ré; um bocado de cupuaçu com maracujá; ou abacaxi com caju e laranja, e você chega a resultados deliciosos. Os acordes são como frutas que você vai dosando, com umas gotas de baunilha aqui, uma pitada de canela ali, uma boa dose de açaí e você tem um refresco maravilhoso. Não posso dizer que me sento para compor uma música. É um pouco como beber um copo de água, você apenas bebe porque tem sede. Para mim, as músicas chegam naturalmente. em qualquer circunstância. Tem uma música muito apreciada, por exemplo, eu estava quieto à beira do Rio, lá no Acre, eu tinha uns sete anos e passou um barqueiro assobiando. Guardei esta célula de som e este sentimento comigo, uma certa melancolia. Anos mais tarde, continuei a melodia e chamei de“Índio perdido”. Veio o Gil, colocou uma letra e virou “Lugar comum”. Claro que, perto da natureza, tudo é melhor. Eu, que nasci no Acre, tenho nas águas dos rios, do mar, no canto dos pássaros, uma inspiração permanente. Garotas bonitas também são uma poderosa fonte de inspiração (risos).

Hoje, o senhor dirige a Sala Baden-Powell - um palco intimamente ligado à música de qualidade na cidade e que incorporou outras manifestações artísticas. 

A minha atuação na Sala Baden Powell é como residente artístico, com um olho firme na programação musical. Parece-me que a Sala nunca esteve tão cheia e com uma programação que está agradando. Na música, a ideia de colocar um letreiro na fachada, “Casa da Bossa”, ajudou a atrair o público de turistas que chega no Rio e quer ver um pouco de Bossa Nova, de MPB. Outro projeto interessante é o Domingos Clássicos Internacionais, nas tardes de domingo, com concertos de piano, camerata, choro. E agora foi criado o Palco Vitrine, para mostrar trabalhos de novos artistas.  O projeto de revitalização do espaço, que já foi um cinema de rua, o Ricamar, é uma ideia fantástica. Às segundas, são quatro sessões de R$4 e R$ 8 para assistir a filmes e participar de debates. No campo do teatro, tem um teatrinho de bolso no quinto andar, para peças experimentais e montagens teatrais. A Baden Powell funciona seis dias por semana e todos os espaços são usados. Somos uma residência artística e estamos de braços abertos para receber artistas e produtores, pois é um teatro público..

*Jornalista

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Serviço 

“QUEM É QUEM”, SHOW DE JOÃO DONATO E BANDA Sala Municipal Baden Bowell. Av. Nª, Sª. de Copacabana, 360 – Copacabana; Tel.: 2547-9147. Sábado, 4/8, às 20h. Ingressos: R$60 e R$30.