ASSINE
search button

Correntes da dúvida: novo filme de Joel Pizzini conjuga ficção e documentário

Obra reflete sobre a expedição Roosevelt-Rondon

Compartilhar

Desde a juventude, o presidente americano Theodore Roosevelt (1858-1919) cultivava uma imagem de audácia e destemor. Não apenas lhe agradava estar ao ar livre, fazer expedições por territórios ermos e praticar atividades como caçadas de leões e elefantes, como também escrevia e publicava sobre os feitos. Em 1912, depois de ser derrotado na eleição que lhe daria o terceiro mandato, ficou deprimido e isolado politicamente. Para afugentar o desânimo, decidiu viver aventuras exóticas nas florestas tropicais do Brasil. 

Na mesma época, o então coronel Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958), mais conhecido como Marechal Rondon, encontrava-se na Amazônia, onde ajudava a demarcar as fronteiras do país. Lá recebeu o convite para liderar um safári. Após resistência inicial, Rondon aceitou, sob a condição de que a expedição tivesse caráter científico, com estudos de história natural e geografia. Surgia assim a famosa expedição Roosevelt-Rondon, que aconteceu em 1913 e 1914 com o propósito de desbravar o Rio da Dúvida, atualmente chamado de Roosevelt, que nasce em Rondônia e desce até o Amazonas.

A expedição é o mote de “Rio da Dúvida”, novo filme de Joel Pizzini, atualmente em finalização e com lançamento previsto para festivais do segundo semestre (Pizzini informou que aguardava a resposta do Festival de Brasília para hoje). A obra combina ficção e  documentário para relatar a jornada pelas corredeiras do rio misterioso, sobre o qual só se conhecia a nascente. Em paralelo à história, a obra levanta interrogações sobre a figura histórica de Rondon, sobre a política indigenista nacional e sobre o equilíbrio entre a preservação do meio ambiente e o desenvolvimento. 

“Entendo Rondon como um personagem muito complexo e interessante. Ele costuma ser lembrado como um dos patronos do exército, fundador da República, positivista, mas, ao lado disso, tem um lado humanista muito presente”, diz Pizzini que, criado no Mato Grosso do Sul, costumava ouvir histórias sobre o militar na própria família. 

“Ele tinha uma visão utópica de que o índio ia se integrar espontaneamente à sociedade, para sobreviver. Como tinha ascendência indígena [o militar tinha antepassados bororo, terena e guará], no processo em que interage com os índios, ele reacende a própria ancestralidade. Isso o leva a desenvolver uma postura humanista de profundo respeito às culturas indígenas”, acrescenta.

Para contar a história, o diretor escalou Rodolfo Vaz e Xando Graça para os papéis de Rondon e Roosevelt – ou de “duplos” ou “fantasmas” dos personagens históricos, como o diretor se refere. Os dois percorrem trechos da expedição original, nos estados de Mato Grosso do Sul e Rondônia, sem omitir diferenças na paisagem – em certo momento, por exemplo, a dupla se vê em meio a uma enorme plantação de soja, onde antes havia selva. A narração é feita pelos dois personagens, com trechos extraídos de cartas, entrevistas e livros. Situações encenadas intercalam-se com outras não encenadas com índios e imagens de arquivo. 

Alegoria da modernidade

Pizzini afirma que as imagens de arquivo são a parte do filme que mais o interessa. Por meio de uma colaboração com o Museu do Índio, o diretor obteve mais de 30 filmes de povos como Nambikwara, Paresí e Cinta Larga. “Como mudamos as imagens de lugar e rompemos com os contextos das obras integrais, o espectador não sabe em qual tempo está. Pode ser um tempo presente, passado ou mítico”, afirma Pizzini. 

Parte das imagens foi filmada na própria expedição, pelo Major Thomaz Reis, que integrou a comitiva até o momento em que o grupo ia entrar em um barco. “Ele quis filmar uma caçada de onça e o Roosevelt não permitiu. Talvez fosse uma questão de vaidade, porque o americano era míope e não gostaria de ser filmado errando tiros”, diz Pizzini. O filho de Roosevelt, Kermit, daria prosseguimento à filmagem. Outras imagens são oriundas de uma expedição na década de 1920, feita para comprovar que a expedição de fato aconteceu – à época, emergiram dúvidas de que a viagem original tinha tido lugar. 

A ideia inicial de um filme sobre Rondon foi do diretor do primeiro filme a cores do Brasil (“Destino em apuros”, de 1953), Mario Civelli. Ele chegou a obter permissão do próprio Rondon para filmar a sua vida, mas morreu em 1993 sem finalizar o projeto. Desde então, a tarefa de levar adiante o legado do militar coube a seu genro, Mario Cesar Cabral Marques, que já organizou dez exposições sobre Rondon e assina o roteiro, e à filha, Patrícia Civelli, que participa como produtora. Marques diz que chegou a procurar Roberto Farias (1932-2018) para dirigir, mas ele não quis. 

As filmagens foram conduzidas em duas expedições ao Mato Grosso e a Rondônia. Segundo Pizzini, os lugares eleitos foram “os mais emblemáticos” da expedição original. A filmagem começou na nascente do rio, em Vilhena (RO), com uma equipe de 45 pessoas. Dentre os pontos visitados, está um trecho da expedição onde ocorreu o assassinato de um cozinheiro por um soldado. O incidente gerou uma contenda entre Roosevelt, defensor do fuzilamento, e Rondon, que respeitava a lei brasileira da época, que não previa pena de morte. 

Na segunda visita, que aparece no final do filme, é marcante a visita a uma aldeia dos índio Cinta Larga, entre Rondônia e Mato Grosso , onde está uma reserva de diamantes que estima-se que seja uma das maiores do mundo. A negociação para entrar na terra, que sofre forte assédio de garimpeiros e onde, em 1960, ocorreu o Massacre do Paralelo 11, com 3.500 índios assassinados, levou meses. 

As interações entre os personagens do filme e os índios não são encenadas. “Sugeri que os atores puxassem alguns temas durante a conversa, mas eles não seguem um roteiro”, diz Pizzini. Essas cenas revelam a memória oral ainda existente de Rondon na região, que aparece como uma figura redentora, quase sebastianista. “O mito dele ainda é muito vivo na região. Há histórias sobre tesouros que enterrou, ou então que vestia uma capa de aço. Muitas vezes, a figura de Rondon é sobreposta à mitologia pré-existente”, diz o diretor. Curiosamente, a expedição original não teve contato com os Cinta Larga, exceto por uma flechada, que vitimou o cachorro de Roosevelt. 

O filme também tem aparições de figuras históricas da política indigenista nacional, como o antropólogo Darcy Ribeiro e os Irmãos Villas-Boas. Há, também, uma breve mas marcante cena com o antropólogo Claude Lévi-Strauss, filmada pelo próprio Pizzini em Paris, para um programa de TV sobre Rondon no início dos anos 2000. Na ocasião, o pesquisador diz que, ao chegar no Brasil nos anos 1930, se impressionou com a deferência que a sociedade demonstrava ao trabalho feito por Rondon com os povos ameríndios, mas que não se sente à vontade para opinar sobre o trabalho proposto por ele. 

Há, também, depoimentos das três netas de Rondon, todas já de idade avançada, que demonstram enorme carinho por “vovô”. Uma delas, Elizabeth, desde a década de 1970 é missionária do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e mora com o povo M?ky, no Norte de Mato Grosso. Questionadas sobre as ambições integradoras e positivistas do antepassado, uma delas sugere no filme que as posições dele hoje seriam diferentes: “Isso tem a ver com a época”, diz.

Pizzini concorda e não omite a simpatia pelo personagem. Cita entrevistas (incluindo uma, gravada em fio de aço, que é um dos únicos registros da voz de Rondon), no final da vida do marechal, em que ele demonstra arrependimento pela ingenuidade de achar que os índios deveriam ser assimilados à sociedade. O enigma de Rondon, para ele, corresponde a alguns dos maiores desafios da própria modernidade: como estabelecer uma relação harmônica e sustentável com a natureza? E como conviver com o outro, sem violência ou imposições? 

“Eu penso no Rio da Dúvida como uma alegoria. O filme está sempre se perguntando: e aí? Qual a saída para a convivência com a natureza? Como conciliar esse projeto humanista de demarcação de terra com desenvolvimento? Um caminho autossustentável é possível? Esse é um paradoxo insolúvel, sobre o qual Rondon já pensava”, diz Pizzini.