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Peter Bogdanovich: 1968 marcou a estreia na direção de longas-metragens de ficção

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Celebrizado por seus turbilhões políticos, 1968 marcou a estreia na direção de longas-metragens de ficção de um ator, escritor e, sobretudo, cinéfilo, vindo de Nova York, que marcaria o imaginário da década de 1970 com um filme inesquecível chamado “A última sessão de cinema” (1971). Naquele tempo, Peter Bogdanovich despontou na geração do cinema novo americano – ou Nova Hollywood – como um memorialista: entre os longas que dirigia, ele publicava livros ou rodava documentários centrados nos realizadores do passado. 

Não por acaso, seu trabalho de estreia, o tal filme de 1968, “Targets” (aqui “Na mira da morte”), tinha no elenco o eterno monstro de Frankesntein: Boris Karloff (1887-1969). Era um sinal de seu apreço pelo passado, que, neste momento, materializa-se na forma do resgate do legado de Orson Welles (1915-1985), de quem Bogdanovich foi biógrafo e amigo. Em nome dessa amizade, o cineasta nova-iorquino de 78 anos está finalizando a montagem de um longa inacabado de Welles, “The other side of the wind”, rodado entre 1970 e 76 e previsto para ser lançado pela Netflix em breve.

Em paralelo, enquanto se prepara para dirigir um filme de fantasmas intitulado “Wait for me”, Bogdanovich finaliza um documentário sobre um dos maiores comediantes da Era Muda das telas, Buster Keaton (1895-1966), em seu auge, na década de 1920. O projeto se chama “The great Buster – A celebration”. Vai estrear em outubro na França, no Festival Lumière, em Lyon, onde ele ganhará uma retrospectiva, formada por cults como “Essa pequena é uma parada” (1972), “Lua de papel” (1973) e “Marcas do destino” (1985). Seu último filme foi a comédia “Um amor a cada esquina” (2014), com Jennifer Aniston.   

Nesta entrevista, sob os bons ventos da saudade que tem de Welles, Bogdanovich revisita memórias e sucessos e fala de sua preocupação com a atual realidade do cinema:

Peter Bogdanovich: Bom, para o cinema, só o fato de ter sido a data de estreia de “Faces”, de John Cassavetes, já tornaria aquele ano único. Foi ali, com aquele longa, que nasceu a ideia de cinema independente. Fora isso, ponha no pacote de 1968 a Guerra do Vietnã, os movimentos de liberação das mulheres, os assassinatos do senador Robert Kennedy e do dr. Martin Luther King. Naquele ano, o cinema acreditava ser capaz de transformar um mundo que estava mudando tragicamente diante de nós. E eu tentei reagir a isso lançando “Na mira da morte”, falando da venda indiscriminada de armas nos EUA.

Como foi dirigir uma lenda como Boris Karloff num momento em que você era iniciante?

Eu já tinha feito umas 30 peças como ator quando comecei esse filme. E já tinha dirigido uns sete espetáculos de teatro. Tinha ainda trabalhado como diretor assistente de Roger Corman em “Os anjos selvagens”, de 1966. Alguma experiência eu tinha. Foram cinco dias de trabalho com Boris, só. Ele já estava bem velhinho à época, mas foi muito colaborativo. Eu tive 23 dias para rodar o filme, com tempo nenhum a perder. Filmamos em 1967 e lançamos só em 1968, porque a montagem atrasou e eu custei a vendê-lo para um distribuidor. Mas estreamos logo após terem matado Bob Kennedy. Imagina o que foi, naqueles dias, lançar um filme sobre um atirador de elite psicopata no momento em que assassinam a tiros um dos senadores de maior popularidade dos EUA.

Bateu censura contra o filme? 

Bateu uma mídia às avessas, positiva, de que meu filme era um documentário antiarmamentista. Passei a ser visto como um diretor cult, o que ajudou na carreira de “Na mira da morte” nas telas e me abriu caminhos para filmar “A última sessão de cinema”, que lancei em 1971.  

Mais ou menos nessa época você foi trabalhar com Orson Welles nos sets do projeto “The other side of the wind”, sobre um cineasta maldito que regressa de um exílio na Europa a fim de devassar Hollywood com um longa inédito. Por que o filme nunca ficou pronto? 

Ficará pronto em breve. A Netflix entrou no projeto e deve lançá-lo até o fim do ano. Faltava dinheiro para terminá-lo, mas conseguimos fechar as operações. A Netflix foi essencial pra gente. Estou trabalhando com Frank Marshall (diretor de “Aracnofonia” e produtor de vários filmes de Spielberg) nessa empreitada, pois nós dois atuamos sob o comando de Welles. É engraçado ver que eu estou bem em cena, pois ele é um grande diretor de atores. Surpresa vai ser quando as pessoas conferirem o desempenho de John Huston (um os maiores cineastas dos EUA, famoso por clássicos como “Relíquia macabra” e “O tesouro de Sierra Madre”) como protagonista. Welles teve brigas com os produtores dos anos 1970. Só montou 40% do filme. O assustador é que, um dia, durante um almoço em meio às filmagens, ele me fez prometer que eu terminaria o filme por ele, caso morresse antes.     

Qual é a emoção de remexer nesse material de quase 50 anos? 

Eu amava Orson. Voltar ao filme é o mesmo que revisitar um amigo que se foi. E é também o mesmo que ver um gênio em ação, num material inédito. Ele nos deixou um filme vanguardista, surpreendente.

E o documentário sobre Buster Keaton, em que pé está?

Garanto que será um filme divertido, pois ele revê alguns dos melhores momentos de Keaton não apenas como comediante, mas como realizador. Keaton foi um grande diretor. Esse meu documentário, que lanço em Lyon, em outubro, é uma busca por esse diretor em ação.

O senhor faz parte de uma geração que reinventou o cinema americano, de 1967 a 1980, da qual fazem parte grandes diretores como Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Brian De Palma e Steven Spielberg, que ainda estão por aí, uns filmando, outros só produzindo. Como é a sua relação com esse coletivo?  

Nós temos, mais ou menos, a mesma idade e todos temos em comum o amor pelo cinema, porém não me sinto parte deles. Quando eles estavam olhando adiante, eu estava preocupado em olhar para o passado e conversar com John Ford, Howard Hawks e outros grandes. Os franceses vão relançar agora um dos meus livros mais requisitados, “Afinal, quem faz os filmes?”, no qual ouvi os gigantes do passado, preocupado em apresentá-los aos jovens de hoje que estão vivendo um tempo difícil para as pequenas produções mais autorais.

Que dificuldades o cinema encontra hoje?

As salas de exibição estão nas mãos de “Star Wars” e dos filmes baseados nos quadrinhos. Os filmes mais artísticos, com menos orçamento para gastar em divulgação, suam a camisa para existir. A Netflix e a Amazon estão produzindo coisa autoral muito boa. Elas produzem bons filmes, mas não é conteúdo para o circuito. Este está dominado por algo que eu não sei fazer.

Há algum bom filme em cartaz? Viu algo recente de qualidade?

“Lady Bird”, da Greta Gerwig, é bom. Não vi o novo do Wes Anderson, uma animação chamada “Ilha de cachorros”, mas acredito no potencial dela, pois ele é ótimo. Vi, há pouco, um filme recente do Noah Baumbach, “Os Meyerowitz: Família não se escolhe”, que é bem bom também. Mas não consigo pensar em nada mais.

Tem algo do Brasil nas suas memórias do passado? Talvez algo de Glauber?

Falam muito que a geração americana dos anos 1960 e 70 viu os filmes de vanguarda da Europa e do Brasil, mas esses longas estrangeiros raramente chegavam a nós. A Nouvelle Vague chegou até a gente, mas nem tudo. O cinema do Brasil, não. Vimos os franceses, Bergman e Kurosawa. E eu fiquei com os clássicos de Hollywood, lutando para eles não serem esquecidos. Sigo nessa até hoje.