ASSINE
search button

Em 'As intermitências da morte', de José Saramago, morte é protagonista da história

Compartilhar

“No dia seguinte ninguém morreu.” É desta forma que José Saramago inicia o romance “As intermitências da morte” (Companhia das Letras, 2017). Nele a morte é a protagonista de uma história que se passa em uma época não demarcada em termos cronológicos, num país imaginário, mas que – como acontece em outros livros do autor – jamais deixará de ser Portugal.

A aventura metafísica de Saramago começa no primeiro dia do Ano Novo, quando a morte desaparece das fronteiras daquele país. A população festeja este fato inusitado com bandeiras nas janelas, uma alegria efêmera toma conta de todos, afinal, a vida tornava-se eterna. O que parecia uma dádiva dos deuses àquela comunidade, logo tornou-se problema, porque, embora a morte estivesse suspensa, a vida não andava.

As primeiras considerações partem das autoridades religiosas e políticas. “Sem morte, ouça-me bem, senhor primeiro-ministro, sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja.” Já a continuidade do Estado, tal qual existia, também é posta em dúvida: “O Estado tentará sobreviver, ainda que eu muito duvide de que venha a conseguir, mas a igreja...”

Foi na elaboração do romance “Levantado do chão” (1980), um dos seus primeiros livros de sucesso, que Saramago descobriu seu estilo, misturando os discursos direto e indireto. O que à primeira vista parece aos leitores uma ausência de pontuação, na verdade surge como uma reinvenção, baseada no fluxo da memória.

Na sua escrita alegórica, as ideias abstratas são representadas por figuras individuais. Neste caso, a morte. Alegoria, etimologicamente, significa dizer o outro, é o outro da linguagem. Como bem diz Saramago nas páginas deste romance: “as palavras movem-se muito, mudam de um dia para o outro, são instáveis como sombras...”

Nas primeiras passagens das “Intermitências...” o narrador descreve o drama de algumas famílias diante de tamanho estranhamento. Enfermos graves pediam para morrer, mas todos se encontravam “em estado de vida suspensa, ou, como eles preferiam dizer, de morte parada.” Uma alternativa a este drama seria arranjar meios de produzir a morte, o que foi possível, não naquela comunidade, mas além das suas fronteiras. Uma família põe seus enfermos à viagem e atravessam a madrugada. Uma vez ultrapassados os limites do país, aí sim, podiam morrer sossegados. Assim o fizeram: “Ajoelharam-se a prantear os mortos que tinham vindo a enganar a morte.” 

Poderíamos considerar o que foi dito aqui como a tentativa de expressar o que seria a primeira parte da narrativa, mas vale observar que esta não é dividida em partes, embora, a partir de então, seu enredo caminhe para uma nítida mudança de rumo. 

O que levou Saramago a produzir esta mudança é difícil dizer, senão impossível. A sua ficção havia produzido uma completa suspensão do cotidiano coletivo, e, doravante, a partir do momento em que entra em cena o violoncelista, seguirá numa trilha individual. Talvez o livro se tornasse um irmão menor do magistral “Ensaio sobre a cegueira” (1995), daí a sua opção. O espaço entre um e outro é de dez anos, e nesse meio termo, Saramago ganhou o Nobel de Literatura de 1998.

Na prática, o retorno da morte se faz através de cartas que são encaminhadas em “sobrescritos de cor violeta”, assinados com letras minúsculas. Com ironia, ela explica a motivação da sua ausência durante o período em que ninguém morreu: “foi oferecer a esses seres humanos que tanto me detestam uma pequena amostra do que para eles seria viver sempre, isto é, eternamente...”

É assim que a morte retorna na sua glória. Humanizada, tomando as representações comuns do imaginário popular, ela cruza o caminho de um músico – violoncelista de orquestra. A este destinatário ela havia enviado a carta de cor violeta, três vezes seguidas, e a missiva havia voltado. Ela decide investigar amiúde a sua vida, e deste encontro surgem diálogos inquietantes e sublimes.

José Saramago nasceu numa família de camponeses da aldeia de Azinhaga, ao Sul de Portugal, em 1922, e morreu na ilha de Azinhaga, Espanha, em 2010, onde vivia com a mulher Pilar. Entre outros romances, publicou “Levantado do chão” (1980), “O ano da morte de Ricardo Reis” (1984) e “Ensaio sobre a cegueira” (1995). A primeira edição de “As intermitências da morte” saiu em 2005.

*Jornalista e escritor