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Obra-prima de Hendrix faz 50 anos: perfeccionismo em grau máximo

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O planeta ficou zonzo quando foi apresentado a um vulcão em erupção crônica chamado Jimi Hendrix, cuja fulminante carreira durou pouco mais de três anos. Filho de pai negro e mãe índia, ele fez com a guitarra o que nenhum outro músico foi capaz, pelo menos neste sistema solar. Hendrix gravou apenas três álbuns em estúdio: “Are you experienced” (1967), “Axis: Bold as love” (também de 1967) e “Electric Ladyland” (1968), que neste 2018 comemora 50 anos de lançamento. 

Produzido pelo próprio Hendrix com engenharia de som e feitiçarias eletrônicas do bruxo Eddie Kramer, “Electric Ladyland” é o mais complexo e corajoso trabalho do músico. Os dois álbuns anteriores, também fabulosos, foram gravados em quatro canais e praticamente ao vivo nos estúdios. Já em “Electric Ladyland”, como Jimi estava com dinheiro, além dos colegas do trio Jimi Hendrix Experience, o baixista Noel Reading e o baterista Mitch Mitchell, ambos ingleses e brancos, Jimi convidou um arsenal de grandes músicos para as gravações: Jack Casady, Brian Jones, Al Kooper, Dave Mason, Steve Winwood e Chris Wood.

As gravações começaram em abril de 1968, duraram cinco meses e foram feitas no Olympic Studios, em Londres, e complementadas e mixadas em 12 canais no Record Plant, em Nova York. Graças à tecnologia, Jimi inseriu várias guitarras ao mesmo tempo (overdubs) e outros instrumentos como piano, congas, flautas, pandeiros, órgão, enfim, uma produção sofisticada, uma vez que o músico via no álbum um divisor de águas. O que de fato foi. 

“Electric Ladyland” não chegou a ser um álbum conceitual, mas seguiu a trilha aberta por “Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles (1967), que usaram e abusaram do experimentalismo em estúdio. Hendrix foi mais longe: fez muitos efeitos especiais utilizando o estéreo, de novo tocou guitarras invertidas (gravadas de trás para frente) e não se preocupou com o fato de não conseguir tocar ao vivo todas aquelas experiências. 

Assim nasceram “Crosstown Traffic”, “All along the watchtower” (do ídolo Bob Dylan), “Voodoo Chile”, enfim, 16 canções que foram muito além de seu tempo. No Brasil, o álbum duplo foi devidamente decepado e lançado como simples, com a capa completamente adulterada. Os fãs brasileiros de Hendrix tiveram que se contentar com meio disco de vinil, mal prensado. Na Inglaterra, saiu com uma capa, nos Estados unidos com outra por causa de uma lambança da gravadora Track Records que ninguém entendeu. 

Jimi Hendrix era tão displicente que só viu a capa inglesa de Electric Ladyland quando o álbum saiu. O produtor Chris Stamp, dono da gravadora Track Records e seu diretor de arte David King resolveram contratar algumas garotas que parecessem “pessoas reais” a cinco libras por cabeça ou dez para quem tirasse a calcinha. A capa foi melancólica com mulheres nuas, mas tristes. Além disso, foi proibida em várias lojas espalhadas pelo Reino Unido. 

Na obra que escreveu para a coleção “O livro do disco” (Editora Cobogó), o guitarrista, jornalista e pesquisador britânico John Perry conta que ninguém entendeu nada, mas há suspeitas de que Chris Stamp quis fazer uma brincadeirinha com o nome “Electric Ladyland”. Uma das modelos, Reine Sutcliffe, na época disse ao jornal “Melody Maker”: “A capa fez com que a gente se pareça com um monte de putas velhas e cansadas. É podre”. 

Jimi estava nos EUA e quando voltou e viu o trabalho ficou furioso e fez, ele mesmo, um esboço, quase um passo a passo, de como deveria ser a capa da edição norte-americana, lançada pelo selo Reprise. Quando o álbum saiu nos Estados Unidos seu esboço foi solenemente desprezado. 

“Electric Ladyland” mostrou outras faces do maior guitarrista da história. Perfeccionista obsessivo, chegava a gravar mais de 50 vezes uma mesma música e, ao final, era comum o engenheiro Eddie Kramer dormir sobre a mesa de som. Foram quase intermináveis sessões de gravação e, depois, mixagem num ambiente amargo. Além da saída de Chas Chandler (não suportou a baderna), o baixista Noel Redding já estava farto do “Experience” e volta e meia desaparecia. Por isso o próprio Jimi toca baixo em algumas faixas. O trio acabou implodindo em 1969. 

De acordo com John Perry, Hendrix não se engajava em nenhum movimento social, optando pela solidão. Não participava do movimento negro porque era discriminado por radicais, também negros, que o acusavam de fazer música para brancos. Também ficava calado quando o assunto era oposição à Guerra do Vietnã (movimento de brancos da classe média) e sua única manifestação foi a arrasadora versão instrumental do hino dos Estados Unidos no Festival de Woodstock (1969), com sons de bombas e metralhadoras que ele fez com a guitarra. Falando devagar, voz baixa, ele dizia que sua guitarra opinava por ele. 

Chas Chandler foi uma espécie de irmão mais velho e lidava com as finanças do músico com muita lisura e há quem diga que, se não fosse ele, Jimi Hendrix não teria sido o sucesso que foi e ainda é. Chandler era baixista de The Animals, em 1967, banda inglesa liderada apor Eric Burdon, que estava se despedindo do cenário. Chas decidiu se tornar empresário. 

Foi procurado pela então namorada do ‘Stone’ Keith Richards, Linda Keith, que tinha assistido Jimi tocando num pequeno clube nova-iorquino e ficou hipnotizada pelo som. Tão hipnotizada que os dois acabaram se atracando torridamente ao longo de várias noites. Foi Linda quem presenteou Jimi com a primeira guitarra Fender Stratocaster, modelo que viraria um símbolo em suas mãos canhotas. Fofoqueiros dizem que a guitarra era de Keith Richards.

Em Londres, com os gigantes 

Chas Chandler levou Hendrix para Londres, onde tudo aconteceu. O músico foi aclamado por gigantes como Eric Clapton, Jeff Beck e Pete Townshend, além da crítica e de uma crescente legião de fãs. O guitarrista estava penando desde o início dos 60’s, correndo atrás do sucesso nos Estados Unidos. Dormiu no fundo de bares, comeu muita xepa e, depois de vislumbrar uma chance tocando com Little Richard, levou um calote. Richard resolveu não pagar o seu cachê. Nesse clima, como recusar a oferta de Chas Chandler de tentar a vida em Londres, terra onde o novo empresário conhecia todo mundo? 

A chegada a Londres foi um enorme impacto e o nome daquele norte-americano negro ecoou por toda a cidade e rapidamente por toda a Europa. Entre seus grandes fãs, estava Paul McCartney que, depois de assistir Hendrix no Jimi Hendrix Experience no Saville Theatre com os outros Beatles em 4 de junho de 1967 (ele ficou impressionando com a versão de “Sgt. Pepper’s” que Jimi tocou, três dias após o lançamento do disco), telefonou para John Phillips, um dos produtores do californiano Monterey Pop Festival e integrante do The Mamas & The Papas recomendando Jimi. 

A sugestão foi aceita e Hendrix finalmente explodiu nos Estados Unidos, depois da incendiária apresentação no festival (junho de 1967) que, no final do show, destruiu e tacou fogo na guitarra.

Das 16 faixas do álbum (hoje considerado uma obra-prima do rock e do blues rock), uma mereceu um tratamento muito especial. “’All along the watchtower’ de seu ídolo, o gênio esquisitão Bob Dylan, ganhou um arranjo comovente. Dylan disse: “Minhas músicas são diferentes porque, de alguma forma, você precisa entrar nelas e, às vezes, isso é difícil até para mim. Jimi cantou-as exatamente da maneira que tinham que ser cantadas. Ele fez do jeito que eu teria feito se fosse ele. Era um grande artista. Eu gostaria muito que ele estivesse vivo, mas ele foi sugado para baixo e isso tem sido a ruína de muitos de nós. Sinto que ele tenha tido o seu tempo e o seu lugar e acabou pagando um preço que não deveria ter pago. Eu não me surpreendo que ele tenha gravado minhas canções, mas sim que ele tenha gravado tão poucas porque elas eram todas dele”. Quando soube da morte de Jimi, Dylan teve uma crise de choro. 

Os críticos europeus e norte americanos receberam o álbum com frieza por uma razão bem simples: não sabiam o que escrever com precisão. Um exemplo foi a britânica Melody Maker que chamou o single de “All along the watchtower” de genial e o álbum de “equivocado e confuso”. A revista “Rolling Stone” também deu opiniões ambíguas. Anos mais tarde, praticamente todos os críticos fizeram uma revisão e tiraram o chapéu para “Electric Ladyland”.

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